quinta-feira
12 julXII Seminário Ítalo-Ibero-Brasileiro
STJ, 25 e 26 de Maio de 2017
Tema da Mesa: O aperfeiçoamento permanente dos profissionais do Direito face à dinâmica do nosso tempo e, em especial, as alterações legislativas e tecnológicas
Saúdo a Exma. Sra. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, diretora da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados . ENFAM, que preside esta sessão.
Cumprimento também os membros da Mesa: Dr. Álvaro Iglesias, da PUC de Campinas; Desembargador George Lopes Leite, diretor da Escola de Formação Judiciária do TJDFT e o Dr. Paulo Roberto Thompson Flores, antigo diretor da faculdade de Direito do UniCEUB.
Não posso deixar de saudar efusivamente o Professor Carlos Fernando Mathias de Souza, alma desse Seminário.
Cumprimento também o diretor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Doutor Rui de Figueiredo Marcos; e o catedrático decano da mesma Faculdade, Doutor Pinto Monteiro.
Demais autoridades, estudantes, senhoras e senhores.
Dedico a minha comunicação à memória do meu Pai.
Ensino jurídico e aperfeiçoamento
O tema dessa mesa refere o aperfeiçoamento dos profissionais do Direito e a contemporaneidade. O tema do aperfeiçoamento, da busca da perfeição é sempre instigante. Contudo, permito-me uma ligeira transgressão: discorrerei, com brevidade, acerca do aperfeiçoamento do jurista. Pois é da formação de juristas que as Universidades têm de curar. E quase como uma impostura poderia afirmar que não são profissionais do Direito, mas verdadeiros amadores do Direito. Pelo amor que devotam a esse pilar da Civilização.
Que é o jurista? É o cultor da ciência do Direito. Os romanos diriam da Iurisprudentia. E o que é a Iurisprudentia para os romanos, sobretudo do período clássico? É o conhecimento das coisas divinas e humanas; e é, sobretudo, a ciência do justo e do injusto. É isso que nos revela um fragmento esculpido no Digesto, atribuído a Ulpiano:
Iurisprudentia est divinarum atque humanarum rerum notitia; iusti atque iniusti scientia.
Será, então, a partir de um fragmento do Digesto, provavelmente de finais do século II d.C. que irei discorrer até chegar aos avanços tecnológicos de nossos dias? Sim! E não será por atavismo de doublé de historiador do Direito. O fragmento é tão rico em lições que ousaria dizer que seria indispensável que todos os pretendentes a jurista refletissem demoradamente sobre este fragmento.
O conhecimento das coisas divinas e humanas
O verbo conhecer nessa passagem significa ter algumas noções acerca das coisas divinas e humanas. Significa que o jurista tem necessidade de noções elementares de teologia – coisas divinas – e filosofia – coisas humanas. Era característica de gênio romano, sobretudo após o contato com os gregos, buscar os grandes panoramas para solucionar os problemas do dia-a-dia.
A própria expressão Iurisprudentia, se dissecada sob os critérios da filologia, da boa teologia e da boa filosofia, nos encaminha para a compreensão da missão transcendente dos juristas.
A virtude da prudência nos leva a viver retamente – aliás como todas as virtudes – sendo uma das virtudes cardeais, assim como a justiça, a fortaleza e a temperança. A virtude da prudência, phronésis em grego, é considerada, por Aristóteles, como sabedoria prática. Tal quer dizer que o homem prudente sabe agir, age bem. Assim, conhece o melhor caminho para alcançar um fim. Para o jurista o melhor caminho para alcançar o justo – nossa causa final – é o Direito. Assim, uma virtude prática nos é essencial – a prudência.
Mas a virtude da justiça é uma virtude moral. O Santo Tomás de Aquino romanista (cita o Direito Romano continuamente na Summa) assumiu a idéia de justiça como firme e constante vontade de dar a cada um aquilo que é seu. A justiça é a vistude suprema e o Direito procura realizar a justiça. Todos os homens são chamados a praticar a virtude da justiça. Todos os dias exercitamos esta virtude. Ela é proporcional e gera harmonia. Mas é preciso dizer que somos seres livres e podemos não praticar a virtude… a injustiça ronda nossos atos.
As Faculdades de Direito não podem, sob pena de prevaricação, deixar de insistir na necessidade dos neófitos buscarem as virtudes da prudência e da justiça. Um dos meios pode ser a reflexão sobre o fragmento de Ulpiano que invoca a necessidade do conhecimento das coisas divinas e humanas; e da ciência di justo e do injusto.
A temperança e a técnica
Uma virtude que os meios universitários também devem desenvolver é a virtude da temperança.
A palavra temperança provém do latim: temperantia. Tal foi a tradução da palavra grega sôphrosunê. Esta está composta por um adjetivo – sôs – que quer dizer são, sadio, saudável; e também um substantivo – phrên – que é a membrana de um órgão que lhe dá unidade. Para os gregos poderia ser a própria alma, sede dos sentimentos e paixões. O homem temperante é aquele cujo espírito saudável equilibra as paixões co que é concupiscível, da parte da alma que deseja as coisas do mundo que são, está claro, indispensáveis à nossa vida e à manutenção da espécie.
A temperança é aquela virtude pela qual as pessoas tornam-se mais sãs e pela qual vencem os impulsos ilícitos, impulsos que fazem também parte da natureza humana. Tal afirmou Raimundo Lullio.
A temperança concorda com a justiça, medindo as coisas ilícitas: precavendo-se e defendendo-se de tudo o que é ilícito. A temperança concorda com a fortaleza na luta contra os apetites da gula. A temperança concorda com a prudência, que nos acautela acerca das formas de resistir a certas propensões ao demasiado comer que provoca enfermidades. A prudência recorda a temperança.
A virtude da temperança ocupa especial lugar na prática da ascese. No pensamento grego a ascese está muito relacionada à temperança. Para os pensadores da Hélade o exercício, a prática habitual era o meio de alcançar a virtude, portanto é meio de aperfeiçoamento.
E a técnica? A técnica é, evidentemente, fruto de um conhecimento. A racionalidade humana naturalmente busca aperfeiçoar habilidades e produzir instrumentos para alcançar fins com mais eficácia.
O desenvolvimento das habilidades humanas, em todos os campos, é fator importante e jamais dispensável. A técnica na manipulação dos analgésicos foi um avanço, precedido do conhecimento das propriedades de substâncias que aliviam a dor. A técnica do anestesista é uma magnífica obra do desenvolvimento da ciência médica e não será jamais assaz louvada.
A técnica, portanto, nos serve, serve muito.
A cautel está na exacerbação do seu uso, na submissão do Ser ao instrumento. Enfim, na febricitação, que podemos chamar intemperança.
O claustro universitário, ao longo dos séculos, buscou estimular as virtudes e reprimir os vícios. As Universidades foram locais de silêncio e, por isso mesmo, de pensamento e de faina constante na transmissão do conhecimento e na investigação. Trabalho árduo de uma corporação que via no saber uma potência pronta a atuar.
Universidade e governo
O problema da idéia de Universidade é espinhoso mas não pode ser abandonado, pois, no meu entender, o mundo é governado pelas Universidades.
Para dar alguma luz ao tema cito uma passagem clarividente publicada em 1946, em São Paulo, num pequeno jornal chamado Legionário.
Todos os homens são governados poucos sabem precisamente quem os governa. Para o analfabeto, o governo se encarna inteiramente nos agentes mais subalternos do Poder, no Juiz de Paz, no sub-delegado, no inspetor de trânsito ou no meirinho. Eles são símbolos vivos do Estado, por cima ou por detrás dos quais se confundem numa auréola imprecisa e quase irreal as figuras demiúrgicas dos altos governantes. O homem de instrução primária fita essa auréola sem deslumbrar e discerne melhor os personagens de categoria, nos quais a idéia de Estado e de Governo se encarna. Só o súdito de horizontes um pouco mais largos chega a perceber que, por detrás dos governantes, existe a lei, o Direito, a ordem natural, forças invisíveis e imponderáveis, a que toca entretanto a mais alta parcela de poder.
Mas, é forçoso dizer, poucos são os que transcendem desta esfera comum, para discernir a influência das várias forças sociais no governo dos homens. Sabe-se, por exemplo, de modo impreciso, que o dinheiro é o nervo de muitos acontecimentos. Poucos, porém, seriam os que lhe poderiam apontar concretamente as artimanhas e manejos. À medida que se sobe na escala de cultura, as noções sobre o governo vão – é óbvio – tornando-se menos pessoais, mais genéricas, ricas e precisas. Mas serão pouquíssimos os que possam atinar com a verdade fundamental. Para a descobrir, não basta inteligência nem cultura. É preciso algo incomparavelmente mais precioso: bom senso, e o que o bom senso ensina é que os homens são governados por forças mais ativas e subtis do que a espada ou mesmo o ouro. Diga-se o que se disser, o mundo sempre foi e será sempre governado pelas idéias.
Não me refiro, é claro, só à influência do pensamento das esferas da alta intelectualidade. Enganam-se os observadores superficiais que julgam que o mundo de hoje escapou ao domínio dos pensadores profundos, porque os in-folios destes se cobrem por vezes de poeira, ignorados e obscuros, nas prateleiras de certas bibliotecas. A glória do intelectual é que ele domina até quando parece não dominar. Obedecem-lhe os que nunca o leram, e talvez nem sequer lhe tenham ouvido o nome. Na opinião daquele varredor de rua ou na concepção de vida daquela modesta lavadeira, pode haver, obscuras, ignoradas, influências de São Tomás ou de Hegel, que nem por isso são menos ativas e importantes.
É que as idéias passam das altas paragens da vida intelectual para a massa da sociedade, não só pela aula ou pelo livro, mas por uma osmose multiforme e obscura, em que está sua maior capacidade de expansão. Elas filtram da Filosofia ou da Teologia para as outras ciências, invadem muito de manso o terreno das artes, fornecem à grande feira das idéias, que é a imprensa, a matéria-prima para o varejo quotidiano, propagam-se pelos resumos, pelas repetições e pelo plágio, e, assim repetidas de mil modos, correm cidades e campos, transpõem montes e mares, espreitam o momento mais oportuno para tomar de assalto as mentalidades, e acabam dirigindo o modo de sentir e de agir, de viver, de trabalhar, de descansar e até de morrer de milhares de seres, com uma precisão e uma segurança que o decreto policial mais tirânico jamais lograria alcançar.
Paul Bourget escreveu que toda a vida, mesmo a mais apagada e trivial, é uma metafísica em ação. Não espanta pois, que o verdadeiro governo do mundo pertença aos apóstolos da metafísica e da mística, ou dos fabricantes de místicas e metafísicas. Diga-se o que se disser, o mundo há de ser governado por uns ou por outros.
Não espanta, pois, que vejamos a sede do verdadeiro governo do mundo, não nas assembleias legislativas ou diplomáticas ruidosas e inúteis, de que tanto se ocupa a imprensa, mas nas Universidades onde silenciosamente se elabora o futuro das almas e das nações.
Á guisa de conclusão
O aperfeiçoamento dos juristas depende do exercício constante das virtudes, que deve ter início na juventude que acorre às Universidades em busca de ideais, disposta aos maiores sacrifícios.
Quanto às novas tecnologias, devem sim servir como instrumento, mas subordinadas à máxima de Horácio, esculpida nas suas Sátiras: est modus in rebus.
Ibsen Noronha
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra