quinta-feira
12 julA protecção do consumidor em Portugal e na União Europeia: o olhar de um europeu
António Pinto Monteiro
Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
- Começo por dirigir a todos cumprimentos de muita estima, admiração e apreço pela V. presença nesta Sessão. É uma subida honra estar hoje aqui convosco, é uma subida honra ter sido convidado para participar neste imponente Seminário do Instituto Ítalo-Ibero-Brasileiro, já com tanto prestígio e tradição, nestas 12 realizações que leva a seu crédito — na realidade, porém, já 31! Parabéns ao Instituto e a toda a equipe que organiza este Seminário.
Mas parabéns de modo muito especial ao nosso Presidente e querido Amigo Prof. Carlos Fernando Mathias de Souza, que com a sua dedicação e entusiasmo insuperáveis tem erguido, ano após ano, esta obra magnífica. Muito obrigado, Professor Carlos Fernando Mathias, pelo convite com que me distinguiu. É um privilégio e uma honra.
2 . Introdução
Falar da protecção do consumidor no Brasil é um atrevimento, pois o Brasil dispõe de um sistema de proteção do consumidor exemplar, onde sobressai o Código de Defesa do Consumidor de 1990! E ninguém melhor do que os Colegas brasileiros — designadamente acadêmicos, juízes, ministério público, advogados — para debaterem os méritos e insuficiências do sistema brasileiro de defesa do consumidor.
Ficarei, por isso, no meu cantinho europeu, para de lá vos fazer o ponto da situação no tocante aos avanços e recuos da proteção do consumidor na Europa.
Dada esta primeira explicação, uma outra importa referir desde já, continuando a delimitar o âmbito da minha intervenção. Estou aqui como jurista, e será nessa qualidade que irei pronunciar-me. Mas é sabido que a defesa do consumidor não se esgota nesse plano — simplesmente, essa é a veste que eu aqui assumo, será o plano normativo que irei privilegiar.
Uma terceira nota prévia se impõe: não irei desenvolver em especial qualquer dos eixos por que passa a defesa do consumidor, seja no plano contratual, seja no plano da responsabilidade civil, seja, enfim, no plano processual, do marketing, da publicidade, das viagens turísticas, do comércio electrónico, da concessão de crédito ao consumo, do superendividamento, etc. Não irei privilegiar qualquer destas ou de outras vertentes por que passa a defesa do consumidor, até porque, de outro modo, para enunciar tudo o que, nesses vários planos, vem sendo feito na Europa, tornaria a minha intervenção demasiado descritiva, longa e aborrecida … Não farei isso! Penso que será mais adequado e mais útil fornecer o quadro geral da protecção do consumidor na Europa e questionar as linhas de orientação futura do direito do consumidor.
Será, pois, o olhar de um europeu que vai estar aqui a partir de agora. E como compreenderão, será principalmente o direito português que norteará a minha exposição. Mas não me limitarei a ele — sendo certo, no entanto, que a qualidade de membro da União Europeia, onde proliferam inúmeras directivas com vista à protecção do consumidor, essa qualidade, dizia, faz com que o direito português de defesa do consumidor seja muito semelhante ao direito espanhol, francês, italiano, alemão, etc, de defesa do consumidor … pois os Regulamentos, Directivas e Decisões valem na Europa para todos por igual…
De todo o modo, se em relação a muitas medidas concretas há grande similitude entre o direito do consumidor dos vários países que integram a União Europeia, o modelo é, todavia, diferente. E é fundamentalmente desses diferentes modelos normativos da protecção do consumidor que iremos aqui tratar.
Mas isso não me impedirá de fazer uma reflexão final sobre o futuro do direito do consumidor, naquilo que tem a ver com a teleologia deste novo ramo do direito, que é a defesa do consumidor. Irei distanciar-me de algumas visões pessimistas sobre as perspectivas do direito do consumidor no futuro próximo.
Antes de perspectivar o futuro, porém, farei uma breve análise do presente e, retrospectivamente, também do passado, onde o Código Civil, qualquer código civil ocupa um lugar de destaque.
3. O Código Civil português
I – Efectivamente, começo pelo diploma fundamental da ordem jurídica privada, que é o Código Civil. O Código Civil português, tal como o Code civil francês (o Código Napoleão, de 1804), o alemão (o BGB, de 1896) ou o italiano (o Codice Civile, de 1942), não contém regras especialmente ditadas para a defesa do consumidor.
Permitam-me que abra aqui um breve parêntesis para fazer uma referência especial ao Código Civil português, que completou 50 anos em 25 de Novembro de 2016, estando a decorrer em Portugal, desde o ano passado, as comemorações relativas ao Cinquentenário do Código Civil. Faço parte da Comissão Comemorativa do Cinquentenário do Código Civil, em representação da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Comissão que é presidida pelo Professor Rui de Alarcão, que integrou a Comissão do Código Civil de 1966, e da qual fazem ainda parte, actualmente, o Presidente do STJ, o Bastonário da Ordem dos Advogados e o meu Colega de Lisboa, Professor António Menezes Cordeiro. Entre outros eventos, tivemos já um Colóquio, no STJ, em 10 de Maio de 2016, e um Congresso Internacional em Coimbra, em 24 e 25 de Novembro de 2016, presididos ambos pelos Senhor Presidente da República Portuguesa, Professor Marcelo Rebelo de Sousa.
O Código Civil português de 1966 é um código de elevado nível técnico e científico. Teve por modelo o Código Civil alemão (BGB), mas recebeu também largos contributos do Código Civil italiano. E beneficiou, sobretudo, do trabalho de excelentes e dedicados juristas portugueses, das Faculdades de Direito das Universidades de Coimbra e de Lisboa.
Os trabalhos da Comissão do Código Civil estenderam-se ao longo de 22 anos, sob a esclarecida presidência do Professor Adriano Vaz Serra. Para a conclusão dos trabalhos foi determinante a acção do então Ministro da Justiça, Professor João de Matos Antunes Varela, ambos Professores da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Como já em outra ocasião sublinhei a este propósito, o Código Civil acolheu, à época, as melhores doutrinas, mesmo aquelas que ainda não tinham obtido consagração legislativa em outros ordenamentos jurídicos, mas constituíam já aí direito vigente, apesar de ser direito praeter legem. Sirva de exemplo a doutrina da base do negócio, acolhida no art. 437º, filiada na Geschäftsgrundlage alemã, a qual, à época, era uma construção da doutrina germânica, seguida e aplicada pela jurisprudência, e que só recentemente, com a reforma do BGB de 2001-2002, foi consagrada no Código Civil alemão. E o mesmo se diga, por exemplo, da doutrina da culpa in contrahendo, entre nós consagrada no art. 227º; ou do direito geral de personalidade, do allgemeines Persönlichtskeitsrecht da doutrina germânica, que o nosso Código Civil acolheu no art. 70º, nº 1.
Quer dizer, o Código Civil português consagra, desde 1966, regras de inspiração alemã que, todavia, na Alemanha, só com a recente reforma do BGB obtiveram acolhimento legislativo, apesar de serem já aí direito há muito vigente, ainda que “não escrito”. O que revela a excelente preparação dos juristas que integraram a Comissão do Código Civil, com destaque para o Professor Vaz Serra, com um saber enciclopédico.
Uma última palavra para o rigor técnico-jurídico do Código e para o cuidado que houve no apuramento linguístico do seu texto. O Código Civil de 1966 é, assim, merecedor de um juízo globalmente muito positivo.
II — Apesar disso, apesar da qualidade indiscutível do Código Civil de 1966, o consumidor foi nele ignorado! O que não é de estranhar, tratando-se de uma situação generalizada nos demais códigos civis dessa época. Isso não significa, porém, que o Código Civil português não disponha de disposições normativas muito importantes para a defesa do consumidor, apesar de não terem sido pensadas com esse objectivo! Entre tantos e tantos outros exemplos, haja em vista a consagração generosa do princípio da boa fé em sentido objectivo, tanto na formação do contrato (art. 227º), como na integração das lacunas negociais (art. 239º), no exercício dos direitos (art. 334º) ou no cumprimento da obrigação (art. 762º, nº 2); a proibição do abuso do direito (de novo, o art. 334º) e dos negócios usurários (art. 282º); a consagração do princípio que permite a resolução ou a revisão do contrato no caso de alteração anormal das circunstâncias (art. 437º); a obrigação de restituir o enriquecimento sem causa (art. 473º); a consagração, em certos casos, da responsabilidade objectiva , sem culpa (arts. 500º, ss); a redução de penas contratuais, por equidade, quando elas forem manifestamente excessivas (art. 812º), etc, etc.
Quer dizer, o Código Civil consagra princípios e regras que, não tendo sido pensadas para a defesa do consumidor, poderão contudo ser aplicadas para este efeito, com este objectivo, comungando de preocupações iguais ou muito semelhantes àquelas que fazem parte do direito do consumidor. Recorde-se, a este propósito, a importância que o princípio da boa fé desempenhou, na Alemanha, para o controlo dos abusos em contratos de adesão/ccg, assim como, no Brasil, a introdução desse princípio na ordem jurídica brasileira, através do Código do Consumidor, em 1990.
Por outras palavras, o Código Civil consagra princípios e regras susceptíveis de corrigir desequilíbrios, impedir abusos, promover a correcção e a lealdade nas relações contratuais, impor deveres, fomentar a segurança e encontrar outros fundamentos para a responsabilidade civil, além da culpa. Ou seja, o Código Civil partilha de preocupações de justiça material e de solidariedade social que, não sendo privativas da defesa do consumidor, têm aqui, todavia, um especial campo de aplicação.
Simplesmente… a vida não é estática, evolui. De 1966 para cá, com a progressiva afirmação da “Sociedade de consumo”, acentuaram-se consideravelmente as situações de desequilíbrio, multiplicaram-se as fontes de risco e surgiram problemas novos. Houve necessidade de intervir legislativamente, perante a insuficiência e/ou a inadequação das soluções tradicionais.
4. A protecção do consumidor no presente
Isso explica a imensa legislação avulsa que existe no presente. Pensemos, entre tantos outros exemplos, nos contratos de adesão, nos contratos celebrados com base em condições ou cláusulas contratuais gerais. Perante este novo modelo contratual, em face deste novo modo de celebração de contratos, bem distinto do modelo negociado tradicional, havia que intervir, para enfrentar problemas específicos ao nível da formação do contrato, do conteúdo das cláusulas predispostas e dos meios de reacção, maxime judicial. Daí a legislação publicada, logo em 1985, que consagrou especiais deveres de comunicação e de informação, proibiu cláusulas abusivas e consagrou uma importante acção judicial de índole preventiva, a acção inibitória.
Atentemos, igualmente, na problemática da responsabilidade do produtor. Perante a dificuldade e inadequação da via extracontratual — com o pesado encargo do ónus da prova a cargo do lesado —, e pese embora as bem intencionadas e engenhosas tentativas para responsabilizar o produtor pela via contratual (apesar de não ser parte no contrato pelo qual o consumidor adquiriu o bem), houve que intervir legislativamente, já desde 1989, consagrando a responsabilidade pelo risco do produtor, ou seja, independente de culpa sua.
Pensemos, ainda, na legislação relativa ao crédito ao consumo. Perante a nova filosofia de tempos recentes, que obedecia ao lema “compre primeiro e pague depois”, “goze já férias e paga depois” — bem oposta à mentalidade tradicional, em que as pessoas poupavam primeiro para poderem adquirir os bens ou serviços de que careciam —, perante essa nova filosofia de vida, dizia, em que o apelo ao consumo e a facilidade de crédito são incessantes — ou eram, pelo menos até à crise de 2008 —, havia que disciplinar o contrato de concessão de crédito, o que foi feito logo em 1991.
Tudo isto sem esquecer as novas modalidades de técnicas de venda, desde a venda no domicílio aos modernos contratos a distância, designadamente os celebrados por via electrónica. Menção especial merece ainda a legislação sobre o time sharing e sobre as viagens turísticas e organizadas.
Eis, em suma, uma série de novos problemas em múltiplos domínios, a impor a necessidade de consagrar novas regras, tendo designadamente em conta a necessidade de proteger o consumidor. É certo que esta preocupação vem na linha de preocupações mais antigas, como as de proteger os mais fracos, a parte débil da relação contratual, e de zelar pela segurança das pessoas. Mas com a “sociedade de consumo” dos nossos dias tornou-se imperioso reagir de modo específico e organizado contra práticas e técnicas de utilização sistemática, tendo por denominador comum a defesa do consumidor, isto é, a defesa de quem é vítima de tais práticas ou técnicas, de quem está à mercê, pela sua situação de dependência ou de debilidade (económica, técnica, jurídica, cultural ou outra), da organização económica da sociedade.
Assistiu-se, assim, por todo o lado, ao aparecimento, que não cessa de crescer, de legislação avulsa, esparsa, de legislação especial. Legislação esta que, além de ficar fora do Código Civil, dificilmente se poderá qualificar, em muitos casos, de direito civil “tout court”, relevando, antes, a sua natureza pluridisciplinar.
Mas a especial sensibilização pelos problemas dos consumidores levou, mesmo, a que os direitos destes tivessem sido reconhecidos ao mais alto nível, acabando por ser acolhidos na própria Constituição da República Portuguesa de 1976.
Em conformidade com o imperativo constitucional de protecção do consumidor, foi publicada em Portugal, logo em 1981, uma importante Lei de Defesa do Consumidor: a Lei nº 29/81, de 22 de Agosto. Nela se estabeleceram os direitos dos consumidores e os direitos das associações de consumidores, bem como as regras e os princípios por que se havia de concretizar a defesa desses direitos. Tratou-se de uma lei-quadro que foi sendo actuada através de muitas outras leis, algumas das quais, ao mesmo tempo, foram transpondo para o direito português as correspondentes directivas da União Europeia.
A Lei nº 29/81 foi entretanto revogada e substituída, em 1996, pela actual Lei nº 24/96, de 31 de Julho, que “estabelece o regime legal aplicável à defesa dos consumidores”. Continuamos na presença de uma lei-quadro, embora mais desenvolvida do que a primeira, que é hoje a trave-mestra da política de consumo e o quadro normativo de referência no tocante aos direitos do consumidor e às instituições destinadas a promover e a tutelar esses direitos.
De entre essas instituições e organismos destaca-se a Direcção-Geral do Consumidor (outrora, Instituto do Consumidor), que é o organismo público destinado a promover a política de salvaguarda dos direitos dos consumidores, bem como a coordenar e executar as medidas tendentes à sua protecção, informação e educação e de apoio às organizações de consumidores, organismo a que a lei atribui ainda poderes de autoridade pública.
Há, em suma, no presente, uma grande preocupação social e política pela defesa dos direitos do consumidor. No plano jurídico, essa preocupação levou a que fosse publicada uma abundante legislação, ainda que dispersa e fragmentária.
Infelizmente, porém, nem sempre à law in the books tem correspondido a law in action! E isto, muitas vezes, por deficiências do próprio sistema legal, a começar pela proliferação legislativa a que se tem assistido, a qual apresenta inconvenientes vários, desde logo pela dispersão e falta de unidade de que dá mostra. Essa uma das razões por que o Governo português me confiou, já em 1996, a tarefa de constituir uma Comissão para a elaboração do Código do Consumidor. A Comissão, a que tive a honra de presidir, entregou ao Governo, no dia 15 de Março de 2006, o Anteprojecto do Código do Consumidor, para debate público, após o qual, por solicitação do Governo, elaborámos o Projecto do Código do Consumidor, que entregámos no final de Junho de 2008. Os tempos difíceis por que Portugal tem passado explicará que o Projecto não tenha (ainda) sido vertido no Código por que se aguarda.
5. A situação na União Europeia e no direito comparado
I – No tocante, especificamente, à União Europeia, tem-se assistido também a um movimento de intensificação legislativa, impulsionado, em grande medida, pelas inúmeras directivas com que se pretende a harmonização legislativa nos países da Comunidade Europeia.
Essas directivas invadem as áreas mais representativas da vida económica e do direito dos contratos, proibindo cláusulas abusivas, disciplinando a concessão de crédito ao consumo, a publicidade, os contratos a distância, o “time sharing”, as viagens turísticas e organizadas, as vendas de bens de consumo e as garantias a elas ligadas, a segurança geral dos produtos, as práticas comerciais desleais das empresas face aos consumidores, a responsabilidade do produtor, etc, etc, etc.
Para além da extensão das áreas cobertas pelas directivas, assiste-se hoje, por outro lado, a uma aparente viragem, passando-se de uma situação em que tais directivas visavam, tão-só, uma harmonização mínima, para uma outra situação, em que há directivas que pretendem obter uma harmonização máxima ou plena.
Quer dizer, após um primeiro momento, em que o legislador comunitário se contentava em obter, em cada Estado membro, um patamar mínimo de defesa do consumidor — podendo cada Estado ir além desse patamar, mas não podendo ficar aquém dele, nas medidas que consagrasse para transposição da directiva —, assiste-se hoje, em contrapartida, à publicação de directivas que visam uma harmonização plena, retirando aos Estados membros uma liberdade de que anteriormente dispunham.
É certo que se a liberdade de cada país passa a ser muito menor, já a harmonização legislativa, porém, tenderá a ser mais completa e efectiva. Acresce, na mesma linha, que se evitarão, deste modo, as distorções na concorrência que as directivas de harmonização mínima permitiam, perante o diferente grau de exigência de cada Estado e o consequente benefício para as empresas de Estados menos exigentes, graças aos menores custos que teriam de suportar, uma vez alcançado aquele patamar mínimo de defesa do consumidor.
Mas é claro que tem outros custos essa menor liberdade de conformação legislativa de cada Estado membro ao ter de transpor para o seu direito interno directivas de harmonização máxima ou plena. Ao fim e ao cabo, tais directivas aproximam-nas dos regulamentos, retirando-lhes características que permitiam afirmar a directiva na sua especificidade e elegê-la como instrumento souple de harmonização legislativa.
Entretanto, as instâncias europeias competentes já tomaram consciência dos inconvenientes vários resultantes da multiplicidade e dispersão das directivas. Daí que, a fim de repensar o acquis legislativo em sede de defesa do consumidor em ordem à adopção de medidas de racionalização e sistematização, a Comissão Europeia tenha lançado, já em 2004, um processo de revisão do acervo relativo à defesa do consumidor.
Este processo teve o seu início com a Comunicação de 2004 “O direito europeu dos contratos e a revisão do acervo: o caminho a seguir”. Mas já em 2 de Outubro de 2001 a Comissão Europeia apresentara o Livro Verde sobre a Defesa do Consumidor na União Europeia e, posteriormente, em 2002, a Comunicação sobre o Seguimento do Livro Verde.
Paralelamente, mas com implicações claras no direito do consumidor, têm sido igualmente muitas as intervenções das instâncias comunitárias no âmbito do direito dos contratos e, até, do direito civil em geral (o que tem levado à criação de vários grupos de estudo onde se debate, inclusivamente, a eventual aprovação, no futuro, de um código civil europeu), culminando no Plano de Acção de 2004, onde a Comissão Europeia propôs que se estabelecesse um Quadro Comum de Referência (CFR: Common Frame of Reference), o qual, segundo alguns, poderá ser visto como um conjunto de guidelines para a legislação futura, e, segundo outros, como um esboço de um código civil europeu.
É de registar ainda a apresentação, pela Comissão Europeia, do “Livro Verde sobre a revisão do acervo relativo à defesa do consumidor”, onde se faz o ponto da situação relativamente ao processo de revisão e se apresentam as questões principais, após o que se equacionam as “opções possíveis para o futuro”, assim como é de destacar, mais recentemente, na linha das preocupações da União Europeia, a Proposta de Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho de 8 de Outubro de 2008 e a actual Directiva 2011/83/EU, de 25 de Outubro de 2011.
No plano internacional, destaque-se, por último, a aprovação, pela Assembleia Geral da ONU, em 22 de Dezembro de 2015, da Revisão das Directrizes sobre Protecção dos Consumidores (UN Guidelines for Consumer Protection 1985, revistas em 1999 e, de novo, em 2015).
II – Todo esse frenesim legislativo acabou por traduzir-se, repito, na ordem jurídica interna dos Estados membros, numa imensidão de textos legais avulsos, dispersos e fragmentários. É esta a situação que (ainda hoje) se vive em Portugal, do mesmo modo que em muitos outros países.
A tomada de consciência do peso negativo dessa inúmera legislação especial foi uma das razões que levou o Governo português a tomar a iniciativa de fazer preparar um Código do Consumidor, nos termos já referidos. Se vier a dar esse passo, Portugal seguirá o exemplo do Brasil e, na Europa, entre outros, como veremos, o exemplo da França e da Itália, apesar das diferenças que o Código português apresentará relativamente a estes dois últimos.
No respeitante ao direito português, será um verdadeiro código a ter em conta, no futuro, se o mesmo vier a ser aprovado com base no Projecto que redigimos, o qual não se limita a reunir o direito existente, antes inova onde se mostra necessário e procura sempre as ligações sistemáticas adequadas.
Mas não tem sido este o passo seguido em toda a parte, relativamente à opção codificadora. Na verdade, outros países, como a Alemanha, optaram por inserir o direito do consumidor no Código Civil: assim aconteceu, por exemplo, com a Reforma do BGB de 2001, através da Gesetz zur Modernisierung des Schuldrechts, na linha do passo já ensaiado em 2000, no mesmo país, e, já antes, de certo modo, também na Holanda.
6. A protecção do consumidor no futuro e a opção pela codificação
I – Numa antevisão optimista do futuro, acreditamos na consolidação da protecção do consumidor. O que se verificará em vários planos: no plano da formação, designadamente da formação jurídica; no plano legislativo, através de um quadro legal que promova soluções justas e eficazes; e no plano organizatório, através de um Sistema (Português) de Defesa do Consumidor que funcione bem e actue em tempo oportuno e de modo eficaz, onde os meios de resolução alternativa de litígios ocuparão um lugar de destaque.
Um dos grandes desafios, a enfrentar no plano legislativo, diz respeito à codificação do direito do consumidor. Questão discutida, na Europa.
Quanto a esta questão, convirá precisar melhor alguns pontos, até porque há quem duvide do passo ensaiado em Portugal ou o contrarie mesmo frontalmente. Vejamos, pois, o problema mais de perto.
II – Efectivamente, continuamos a ser mais sensíveis aos argumentos favoráveis à codificação do que aos argumentos em sentido contrário. Mas convém, desde já, precisar alguns pontos e esclarecer certos aspectos.
Antes de mais, como sempre temos dito, há uma primeira questão a debater, uma primeira alternativa a ponderar: codificação ou não do direito do consumidor? Num segundo momento, se se optar pela codificação, surge então outra questão a discutir, outra alternativa a analisar: codificação, sim, mas onde e como? Designadamente, no Código Civil? Ou num diploma próprio, precisamente o Código do Consumidor?
Encaremos, pois, para começar, a primeira dúvida: codificação ou não do direito do consumidor? A alternativa é entre a inclusão do direito do consumidor num código ou a sua permanência em legislação avulsa, dispersa e fragmentária, que é a situação actual.
Optamos pela codificação. A “età della decodificazione”, de que nos fala Natalino Irti, não tem impedido que vários códigos venham sendo aprovados pelo mundo fora, em diversos domínios, desde códigos civis a códigos do trabalho e do consumidor, entre outros. Fala-se hoje, mesmo, de recodificação.
E não se esqueça o interessante, significativo e alargado debate que se vem travando na Europa sobre o problema de saber se deve ou não haver um código civil europeu ou, ao menos, um código europeu dos contratos ou, até, um código do consumidor europeu (o que nos suscita muitas dúvidas…). Em qualquer caso, atente-se bem, é de um código que se fala, seja ele civil, dos contratos e/ou do consumidor.
O que bem se compreende. Basta atentar na enorme vantagem de reunir num único diploma centenas de normas dispersas por uma multiplicidade de leis e decretos-leis. Parece-nos que assim se facilitará o conhecimento e a compreensão das regras jurídicas e se beneficiará a sua aplicação prática e o próprio acesso ao direito. Vantagens importantes, sem dúvida, para as empresas e para os consumidores.
Por outro lado e ao mesmo tempo, a elaboração de um código permite que se evitem as sucessivas repetições com que a par e passo se depara na legislação avulsa, seja a propósito da fixação do regime jurídico do direito de arrependimento (direito de livre resolução do contrato), seja a respeito das exigências de formalismo negocial, da noção de consumidor, da proibição de renúncia antecipada aos direitos concedidos, dos requisitos da informação a prestar, da contratação a distância, etc, etc, etc. Quer dizer, em vez de inúmeros diplomas, soltos e desligados, a regularem figuras e institutos que em parte são comuns — e por isso a incorrerem em sucessivas repetições —, teremos um único diploma que consagrará, de uma só vez, aquilo que é comum a vários contratos ou situações e estabelecerá depois, tão-só, as especialidades de cada caso.
Numa palavra, a elaboração de um código possibilita a reunião, num só diploma, em termos ordenados e segundo um plano coerente e racional, da maior parte das normas à deriva nesse “mare magnum” de legislação avulsa, esparsa, destinada à defesa do consumidor.
À facilidade de consulta que o código possibilita — em benefício de todos, do consumidor às empresas e aos tribunais —, junta-se, por outro lado, o contributo que ele dá para a autonomia e dignidade do direito do consumidor e das várias organizações e entidades que fazem parte do Sistema (Português) de Defesa do Consumidor.
Não é de surpreender, por isso, e atente-se muito bem no que vamos dizer, que neste momento a tendência europeia vá no sentido da codificação do direito do consumidor. Este passo foi dado pela própria Alemanha, já desde 2000, mas muito especialmente em 2001, assim como em parte tinha sido já esse, em 1992, o exemplo holandês; em 1993 foi a França e, depois disso, em Outubro de 2005, foi a Itália a seguir o mesmo caminho.
Mais recentemente, em 2010 foi a Catalunha, em 2011 o Luxemburgo e em 2012 a República Checa a fazerem essa opção. Fora da Europa, louva-se o passo importante que deu o Brasil, já em 1990.
Como se vê, países de cultura e tradição jurídicas muito fortes — “maxime”, a Alemanha, a Itália e a França — optaram pela codificação do direito do consumidor. Com uma importante diferença, é certo, pois no caso alemão, checo e holandês a opção foi por incluir o direito do consumidor no código civil, enquanto que em França, Catalunha, Luxemburgo, Brasil e Itália se optou por aprovar um código do consumo ou do consumidor. Num caso e no outro, porém — na Alemanha, República Checa, Holanda, França, Catalunha, Luxemburgo, Brasil e Itália —, optou-se pela codificação. E esse é o passo certo, a nosso ver.
III – Estamos convictos, como temos dito, de que a opção, no futuro, será entre a inclusão do direito do consumidor no Código Civil ou, antes, num diploma próprio, o Código do Consumidor. Esta é, pois, a segunda alternativa a considerar, caso se opte pela codificação em vez de manter a situação actual. Aqui chegados, temo-nos inclinado para o segundo termo da alternativa, isto é, a favor do Código do Consumidor. Por várias razões.
À partida e desde logo, parece bem mais complexo e difícil enxertar o direito do consumidor no Código Civil do que fazer um diploma de raiz… Trata-se, afinal, em grande medida, de reunir e sistematizar, segundo uma linha de racionalização e coerência interna, direito já hoje vigente na ordem jurídica portuguesa e que permanece fora do Código Civil ou de qualquer outro código. Não se mexe no Código Civil, nada se retira deste, não há qualquer “ataque” ao Código Civil!
Observe-se, em segundo lugar, que teriam de ficar fora do Código Civil aspectos fundamentais do regime jurídico da defesa do consumidor, designadamente os que são de índole processual, penal e administrativa. Faz sentido que a um direito pluridisciplinar se faça corresponder um novo código, que possa ele próprio incluir normas de índole pluridisciplinar. A não ser assim, as normas que visam a defesa do consumidor continuariam a dispersar-se por vários códigos, em prejuízo da sua unidade e identidade. O Código do Consumidor terá pois a vantagem, além do mais, de concentrar toda a disciplina relevante nesta sede, independentemente da natureza civil ou comercial, penal, administrativa ou processual das suas normas.
Acresce que o direito civil e o direito do consumidor têm diferentes paradigmas, sendo o primeiro dominado pelo princípio da igualdade e o segundo pelo princípio da defesa do consumidor. Não parece assim adequado inserir no Código Civil um direito onde prevalece um diferente paradigma.
A este propósito, é bem significativo e actual que o Professor Pierre Catala, na apresentação do Anteprojecto francês, de 22 de Setembro de 2005, da reforma do direito das obrigações e do direito da prescrição do Code Civil, tenha justamente salientado que “Le code civil s’adresse de manière indifférenciée à tout citoyen, qu’il prend en charge de son premier à son dernier soupir, dans une égalité républicaine”. E prossegue o Autor, destacando que “o direito civil é um direito do equilíbrio (…), sem a priori favorecer uma ou outra parte”, pertencendo por isso “à d’autres codes ou lois” a incumbência de reequilibrar a balança em função das situações jurídicas a tutelar e das finalidades pretendidas.
Por último, repare-se que a opção pelo Código Civil não eliminaria os inconvenientes e dificuldades que envolve a codificação do direito do consumidor, antes os agravaria, pela importância e peso histórico do Código Civil; e embora tenha a seu favor, sem dúvida, importantes argumentos de ordem sistemática, a verdade é que tal opção não reuniria todas as vantagens que o Código do Consumidor pode trazer, desde logo permitindo este, mas não aquele, acolher normas de natureza interdisciplinar. Sem esquecer que o Código do Consumidor é um microssistema, acolhe um estatuto especial, o que o torna mais adequado ao objectivo que visa.
Apesar do passo dado pela Alemanha e do exemplo que o mesmo poderia constituir, o certo é que, já depois disso, como dissemos, a Itália seguiu caminho diverso, com a publicação, em Outubro de 2005, do Codice del Consumo. Código este que veio mesmo revogar matéria que estava no Código Civil, por ter chamado a si a disciplina das cláusulas abusivas, até então incluída neste diploma.
E repare-se que estamos a falar de um país em que o Código Civil é como que um código do direito privado, por abranger não só o direito civil mas também, por exemplo, o direito do trabalho e o direito das sociedades. Estranhar-se-ia menos, por isso, que ele pudesse vir a incluir também o direito do consumidor — mas não foi essa, como vimos, a opção do legislador italiano.
Mais uma nota de actualização, a este respeito, agora relativa ao exemplo francês. Como se sabe, o Code de la consommation é de 1993. Em 2013, na comemoração dos 20 anos deste Código, a doutrina francesa sublinhou a necessidade de o rever a fundo, na sua estrutura e conteúdo. Por outro lado, em 2004, foi o Code civil a comemorar um importante aniversário: neste caso, 200 anos! Pois bem, as iniciativas francesas de reforma do direito das obrigações não trouxeram consigo propostas doutrinais de integração das normas do direito do consumidor no código Civil, esvaziando o Código do Consumo. Pelo contrário, fazendo-se eco do clima doutrinal favorável a rever a fundo e a ampliar o Código do Consumo, o legislador francês dividiu essa tarefa em duas étapes: por um lado, através de uma lei de 17 de Março de 2014 — loi Hamon—, procedeu à transposição da Directiva 83/2011 e à consagração de numerosas disposições legais; por outro lado, com a referida lei (art. 161) delegou no Governo a refundição e adaptação de toda a parte legislativa do Código do Consumo, incluindo nele, se necessário, disposições até agora não codificadas. Como se vê, para concluir, a opção — bem recente! — do legislador francês foi a de manter e reforçar o Código do Consumidor e não a de esvaziar este código, em prol do Code Civil, pese embora a importância histórica deste último!
E a reforma de que beneficiou recentemente o Código Civil francês, através da “Ordonnance” nº 2016-131, de 10 de Fevereiro de 2016, no direito dos contratos — que entrou em vigor no dia 1 de Outubro de 2016 (art. 9º) —, a reforma, dizia, veio ao encontro dessa opção, tendo o legislador francês respeitado o Code de la consommation ao reformar o Code civil.
IV – Para fechar este ponto, gostaríamos de registar ainda mais duas notas.
É de evitar que, a pretexto de nele inserir o direito do consumidor, se acabasse por rever precipitadamente o Código Civil.
Gostaria de sublinhar esta nota, de respeito pelo Código Civil — obra notável da civilística portuguesa, pleno de interesse e actualidade —, pois jamais a opção por um código do consumidor que se limite a reunir matéria legislativa que tem estado sempre, desde a sua origem, fora do Código Civil, poderá ser vista como uma menorização deste ou uma tentativa de “assalto ao poder”…
A segunda nota é para lembrar a condição de civilista que acima de tudo me orgulho de ser! E como “civilista” ficarei muito feliz se a opção de política legislativa vier a ser a de incluir o direito do consumidor no Código Civil. Não seria, a nosso ver, a melhor opção — mas ela seria claramente preferível à situação actual, pelos graves inconvenientes que apresenta, hoje, a dispersão das normas legais que procuram cumprir o imperativo constitucional da defesa do consumidor.
Evidentemente que um passo desses, a ser dado, requererá redobrada atenção e cuidados, a fim de evitar que a inclusão do direito do consumidor venha a quebrar a harmonia, a coerência e a unidade do Código Civil. Pelo nosso lado, no entanto, não regatearíamos esforços nem nos furtaríamos à responsabilidade de colaborar nessa tarefa. É que o óptimo é — ou pode ser — inimigo do bom!
7. Conclusão
Temos dito que estamos a par do debate europeu, no qual, aliás, alguns de nós vão intervindo. E conhecemos também os apelos muito recentes de alguma doutrina a um “direito dos cidadãos” ou a uma “cidadania europeia”, conceitos ou ideias em que iria desembocar o direito do consumidor. Este como que teria cumprido o seu papel, concluído a sua tarefa, ao estender ao direito civil princípios e regras que surgiram para defesa do consumidor e que eram privativas do direito do consumidor. Para esta perspectiva, o exemplo mais revelador dessa tendência verificar-se-ia na Alemanha, ao incluir-se o direito do consumidor no Código Civil.
Vemos com muita dificuldade e com grande reserva, porém, que esse passo para um “direito dos cidadãos” ou o apelo a uma “cidadania europeia” possa servir como que de cavalo de Tróia para uma conquista do direito civil pelo direito do consumidor, estendendo indiscriminadamente àquele — em detrimento dos seus princípios da autonomia, da liberdade e da igualdade — regras que se criaram e foram desenvolvendo no seio deste, para defesa do consumidor.
Mas também não nos parece, ainda que com outro sentido e preocupações, que se possa recuar ao velho conceito de cives, cidadão, para se justificar uma generalizada e indiferenciada inclusão do direito do consumidor no Código Civil, com base na ideia de que este abrange todo o cidadão e, portanto, também o consumidor.
Diria que nem a conquista do direito civil pelo direito do consumidor, nem a capitulação deste perante aquele — pois num caso e no outro seria a especificidade do direito do consumidor que se perderia, em prejuízo de quem, hoje, se visa proteger: precisamente, o consumidor!
Gostaríamos, a concluir, de sublinhar que mantemos a nossa clara preferência pela codificação do (essencial do) direito do consumidor, em alternativa à legislação avulsa, dispersa e fragmentária que foi surgindo para defesa do consumidor.
Feita esta primeira opção, uma segunda abraçámos, de seguida, a favor do Código do Consumidor, em alternativa à inclusão de tais matérias no Código Civil. Mas não rejeitamos que possa vir a ser esta última a opção legislativa.
As razões das nossas escolhas foram apresentadas. Não vamos agora repeti-las.
Mas permitam-me que acrescente mais duas ou três breves notas.
Em primeiro lugar, para sublinhar, com Sergio Cámara Lapuente, que “em todos os sistemas estudados se detecta uma clara tendência favorável à sistematização e ‘recodificação’ do direito do consumo”, seja através de códigos do consumidor (na França, Luxemburgo, Catalunha, Itália e Brasil), seja através de “Leis Gerais” que, pela sua estrutura e conteúdo, são, de facto, códigos do consumidor, como o actual “Texto Refundido de la Ley General para la Defensa de los Consumidores y Usuarios”, em Espanha, ou, até, a “Konsumentenschutzgesetz” austríaca, de 8 de Março de 1979 (já várias vezes reformada), ou a “Lei de protecção do consumidor” búlgara, de 9 de Dezembro de 2005, seja, finalmente, através da inclusão do direito do consumidor no código civil, como o fez a Holanda, a Alemanha e a República Checa.
A este respeito, e na linha de leis gerais que mais não são, no fundo, do que códigos do consumidor, é significativo que, no Reino Unido, o Governo tenha apresentado, em 13 de Junho de 2013, um projecto de lei (Consumer Rights Bill) que muitos qualificam como uma autêntica codificação do direito do consumidor britânico, num país de “common law”, avesso ao ideal codificador.
Finalmente, convirá lembrar que também entre as mais recentes preocupações da União Europeia parecem figurar as de combater a “fragmentação” das normas do direito do consumidor e de promover um quadro normativo “mais rigoroso” e “sistematicamente” mais ordenado, “eliminando incoerências e colmatando lacunas”, a fim de incentivar o “nível de confiança dos consumidores”, a “competitividade das empresas” e o “funcionamento do mercado interno”. Dá-nos conta de tais preocupações, por ex., a Directiva 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Outubro de 2011 (na linha do que fora já a Proposta de Directiva de 8 de Outubro de 2008), preocupações essas que normalmente se apresentam para justificar a codificação.
A segunda nota é para chamar a atenção que quando se opta por um código do consumidor se trata de uma codificação com um sentido próprio, bem diferente daquela que prevaleceu no movimento de codificação do século XIX e entrou pelo século XX. Os códigos do consumo em vigor são essencialmente compilações das normas jurídicas já em vigor, que se procuram reunir, ordenar e sistematizar. São códigos que procuram refundir o direito existente e não propriamente refundar todo um sistema ou ramo de direito, conforme o ideal codificador do século XIX. A excepção de vulto é o Código de Defesa do Consumidor brasileiro, o qual, nas palavras de Cláudia Lima Marques, é uma lei “renovadora das bases de direito civil brasileiro”.
Pode é vir a perguntar-se, com Sergio Cámara Lapuente, se a coerência e a maior sistematização exigíveis não levarão, num momento ulterior, a superar uma “refundição superficial” e a reclamar uma “profunda refundação” do sistema especial do direito do consumidor. Esse momento ulterior teria já chegado, em França, apelando-se aí à necessidade de reforma do Code de la consommation, 20 anos depois da sua publicação, reforma essa que deveria levá-lo a deixar de ser uma mera codificação “à droit constant”. Pelo nosso lado, cremos que, nessa altura, chegado esse momento, poderá efectivamente ponderar-se se essa refundação implicará, no plano legislativo, a opção por um código do consumidor ou, antes, a inclusão do direito do consumidor no código civil e nos demais códigos existentes, consoante a natureza das normas jurídicas a codificar.
A terceira e última nota tem a ver com a chamada de atenção para a importância que terá o estudo e desenvolvimento do direito do consumidor para o cumprimento daquela tarefa. Como universitário, regozijo-me por o direito do consumidor ter entrado já no elenco das unidades curriculares das nossas Faculdades de Direito (assim, pelo menos, na FDUC, na FDUL, na FDUNL, na UCP e na Universidade Portucalense), tal como me regozijo com as várias teses de doutoramento, mestrado e outros estudos que têm sido publicados e, bem assim, com os centros de estudo e de arbitragem entretanto criados. Sem dúvida que a formação jurídica é fundamental para a consolidação do direito do consumidor e para a sua efectiva aplicação prática.
A este respeito, estou optimista — ou gostaria de estar! — quanto ao futuro do direito do consumidor, pese embora as dificuldades por que pode vir a passar a DGC e todo o Sistema Português de Defesa do Consumidor, com menores apoios às associações e centros de arbitragem. A crise económica e financeira poderá vir a explicar, em parte, a menor atenção que venha a ser prestada à defesa do consumidor. Mas também ao nível da União Europeia o protagonismo do consumidor vai sendo menor, cada vez mais transparecendo a preocupação de dar confiança ao consumidor enquanto instrumento de dinamização do mercado, não sendo o objectivo de assegurar “um elevado nível de defesa dos consumidores” mais do que um modo de contribuir “para o bom funcionamento do mercado interno”!
Qual o futuro do direito do consumidor? Permanecerá ele autónomo? Diluir-se-á no direito civil? Assistir-se-á à “civilização” do direito do consumidor? Ou, antes, à sua integração no direito comercial, na linha do polémico e muito criticado Anteprojecto de Código Comercial espanhol de 2014 (com base na Proposta de Junho de 2013 da Comissão Geral de Codificação, secção mercantil), que considera comerciais os contratos de consumo e atribui essa natureza, por via indirecta, a toda a legislação de defesa do consumidor? Ou no direito económico, na linha, desta vez, do direito belga, que por lei de 28 de Fevereiro de 2013 adoptou um novo “Código de Direito Económico”, onde inclui (no Livro VI) a maior parte das normas de protecção do consumidor?
Não iremos, aqui e agora, pronunciar-nos sobre isso. Limitar-me-ei a registar que a opção por uma ou outra alternativa — inclusão do direito do consumidor no Código Civil ou, antes, a sua consagração num código do consumidor — será um factor importante, ainda que não decisivo, para a definição da natureza do direito do consumidor e a sua autonomia perante os demais ramos do direito.
Mas importa que se esclareça, isso sim, que a nossa opção pelo Código do Consumidor não significa que nos alheemos de tudo o mais, que para solucionar problemas do direito do consumidor ignoremos os demais elementos legislativos em vigor. Pelo contrário! O postulado metodológico da unidade do sistema jurídico reclama que se deva ter em atenção não só o Código do Consumidor mas também, entre outros, a Constituição e o Código Civil.
O Código do Consumidor não é (não será) uma lei isolada. Ele integra-se no todo da ordem jurídica, faz parte do sistema como uma unidade, sistema que é sempre convocado pelo problema concreto — qualquer que ele seja — que em cada momento se tenha de decidir.
Não está assim o Código Civil em oposição ao Código do Consumidor; pelo contrário, a articulação entre ambos será indispensável, o “diálogo de fontes” será imprescindível, o postulado metodológico da unidade do sistema assim o exige.
Por último, gostaria de deixar claro e de sublinhar, mais uma vez, que proteger o consumidor não é mais do que proteger a pessoa humana, o cidadão, numa relação especial, a relação de consumo, de modo semelhante ao que sucede com a protecção do trabalhador e a autonomia do direito do trabalho. É a dignidade da pessoa humana que leva à consagração de regras especiais, seja quando actua na veste de trabalhador, seja quando actua na veste de consumidor. Num caso e no outro, trata-se de defender a pessoa humana de modo eficaz, através de regras específicas e adequadas.
Muito obrigado pela vossa atenção.