SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL BRASILEIRO
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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL BRASILEIRO

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL BRASILEIRO

Relatório 2012/2013

Fernanda Mathias de Souza Garcia

Carlos Bastide Horbach

 

Sumário: 1. – Introdução. – 2. A jurisdição constitucional no Brasil: aspectos gerais.- 2.1. Sistema de controle: coexistência do modelo europeu e norte-americano.- 2.2. Parâmetro de controle: quais são as normas constitucionais no Brasil? – 2.3. O Supremo Tribunal Federal (STF): composição e funcionamento. – 3. A jurisprudência do STF em 2012 e 2013.- 3.1. Direitos fundamentais. 3.1.1. Lei “Maria da Penha” – a questão da violência doméstica. – 3.1.2. Crime de aborto e interrupção da gestação de anencéfalos.- 3.1.3. Ação afirmativa: reserva de vagas em universidades. – 3.2. Organização do Estado e dos poderes. -3.2.1. “Precatórios” e a Emenda do Calote. – 3.2.2. Controle preventivo: tramitação de projetos no Congresso Nacional. – 3.2.3. Combinação de leis e separação de poderes. -3.2.4. Rito das Medidas Provisórias; 3.3. Garantias constitucionais no processo penal.-3.3.1. Ação Penal nº 470 – O Processo do Mensalão – 6.2 Os embargos infringentes e a possibilidade de execução imediata de condenações definitivas-3.4 Direitos Políticos. 3.4.1. O Prefeito Itinerante – 3.4.2. A Lei da Ficha Limpa- 4. Conclusões.

 

1 – Introdução.

 

Nos últimos anos, em especial depois do advento da Constituição Federal de 1988, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem adquirido um papel institucional inédito na vida político-jurídica brasileira, alçando a jurisprudência constitucional ao nível dos temas mais discutidos e estudados pela ciência jurídica no Brasil.

Desse modo, o protagonismo do STF em diversos assuntos polêmicos teve a consequência de projetar novas luzes sobre o resultado de seu labor interpretativo do texto constitucional brasileiro, o que acarreta – ainda que involuntariamente – uma natural comparação com o modo como a jurisprudência constitucional é desenvolvida nos sistemas jurídicos de outros países que, por diferentes razões, têm influência no desenvolvimento do direito constitucional pátrio.

Nessa perspectiva, o presente relatório se apresenta como uma importante oportunidade de expor à comunidade jurídica internacional o modo como o STF atua no exercício de suas competências no campo da jurisdição constitucional, permitindo o início de um diálogo acadêmico e institucional, que tem a potencialidade de aprimorar o movimento de crescente influência das experiências estrangeiras na jurisprudência constitucional brasileira.

Para tanto, serão inicialmente apresentados os traços gerais da jurisdição constitucional brasileira (Parte I), para que se compreenda o ambiente institucional em que foram proferidas as decisões que são, em momento posterior, detalhadamente analisadas (Parte II).

 

2 – A jurisdição constitucional no Brasil: aspectos gerais.

 

Antes da exposição pormenorizada dos principais julgados que foram proferidos pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro ao longo dos anos de 2012 e 2013, faz-se necessário apresentar, ainda que em linhas breves, alguns aspectos relevantes do sistema brasileiro de jurisdição constitucional.

Esse panorama geral do modo como é exercida no Brasil a jurisdição constitucional pode ser sintetizado em três grandes aspectos: a coexistência dos modelos difuso e concentrado de controle de constitucionalidade (item A abaixo); a extensão da Constituição brasileira, o que define os parâmetros de controle incidentes sobre as normas ordinárias (item B); e, por fim, o modo como se estrutura e funciona o Supremo Tribunal Federal (item C).

 

2.1 – Sistema de controle: coexistência do modelo europeu e norte-americano.

 

O controle judicial de constitucionalidade das leis surge no Brasil com o advento da proclamação da República, em 1889.  Antes disso, na vigência da Constituição imperial (1824-1889), havia um sistema bastante desenvolvido de controle de constitucionalidade das leis editadas pelas províncias do Império, no qual o Conselho de Estado – órgão jurídico-político de assessoramento do Imperador – recomendava à Assembleia Geral – órgão no qual era investido o Poder Legislativo no Império – a anulação do ato normativo, cabendo a esta aprovar uma lei tornando-a inaplicável.

Entretanto, em nenhum momento da vigência da Constituição de 1824 reconheceu-se ao Poder Judiciário a competência para exercer o controle de constitucionalidade das leis, atribuição essa que somente lhe seria conferida nos primeiros meses do regime republicano, mais precisamente com a edição do Decreto no 848, de 1890, responsável pela organização da Justiça Federal no Brasil.

Tal diploma pode ser considerado o marco inicial na jurisdição constitucional brasileira, uma vez que definia os poderes do Supremo Tribunal Federal, entre eles incluindo o de apreciar a validade de atos frente à Constituição, como se pode verificar do disposto – seguindo a técnica legislativa de então – no parágrafo único do inciso II do seu art. 9º:

“Paragrapho unico. Haverá tambem recurso para o Supremo Tribunal Federal das sentenças definitivas proferidas pelos tribunaes e juizes dos Estados:

  1. a) quando a decisão houver sido contraria á validade de um tratado ou convenção, á applicabilidade de uma lei do Congresso Federal, finalmente, á legitimidade do exercicio de qualquer autoridade que haja obrado em nome da União – qualquer que seja a alçada;
  2. b) quando a validade de uma lei ou acto de qualquer Estado seja posta em questão como contrario á Constituição, aos tratados e ás leis federaes e a decisão tenha sido em favor da validade da lei ou acto;
  3. c) quando a interpretação de um preceito constitucional ou de lei federal, ou da clausula de um tratado ou convenção, seja posta em questão, e a decisão final tenha sido contraria, á validade do titulo, direito e privilegio ou isenção, derivado do preceito ou clausula”.

 

Interessante notar que o Decreto 848 é anterior ao primeiro texto constitucional republicano, a Constituição de 1891. Entretanto, desde junho de 1890, vigorava o Decreto nº 510, que instituíra uma Constituição provisória para o país, a partir da qual seria elaborada, pelo Congresso Constituinte, a normatividade constitucional promulgada em 1891.

Desse modo, a jurisdição constitucional brasileira nasce sob o influxo marcante do direito estrangeiro, em especial do direito norte-americano, como bem marcado pelo art. 386 do Decreto 848, segundo o qual “os estatutos dos povos cultos e especialmente os que regem as relações jurídicas na Republica dos Estados Unidos da América do Norte, os casos de common law e equity, serão também subsidiários da jurisprudência e processo federal”.

Ante o transplante abrupto de instituições republicanas e presidencialistas para um ambiente cultural orientado por anos e anos de práticas constitucionais monárquicas e parlamentaristas, natural que a doutrina e a jurisprudência de países experimentados nessas “novidades” fossem a fonte mais fácil e confiável na interpretação e na aplicação da ordem constitucional da República.

Assim, desde 1890, tem o Brasil um modelo de jurisdição constitucional que reproduz a essência do sistema norte-americano: todo e qualquer juiz, no exercício de sua jurisdição, pode declarar a inconstitucionalidade de uma lei, se tal questão se colocar como imprescindível para o deslinde da controvérsia que lhe é submetida. Trata-se de um sistema difuso – todos os órgãos judiciários podem exercer a jurisdição constitucional – e incidental – pois a questão constitucional é um incidente que se põe para o deslinde da matéria processual principal, objeto da ação; cujas decisões têm efeitos restritos às partes do processo – inter partes.

Ocorre, porém, que a importação do modelo americano de controle de constitucionalidade não foi acompanhada pela inserção, no direito brasileiro, de um dos mais importantes aspectos do sistema jurídico de common law, qual seja, a regra do precedente, o stare decisis. Assim, ainda que o Supremo Tribunal Federal tivesse o poder de decidir em último grau recursal sobre a constitucionalidade, ou não, das leis, suas decisões não eram – como ainda não o são, em muitos casos – de observância obrigatória pelos órgãos judiciários que lhe são inferiores.

Nessa perspectiva, a evolução do sistema brasileiro de controle de constitucionalidade foi exatamente no sentido de torná-lo mais coerente, por meio da imposição das orientações do órgão de cúpula aos demais órgãos do Poder Judiciário. O primeiro estágio desse processo evolutivo se deu com a segunda constituição republicana, promulgada em 1934, que estabeleceu o poder do Senado Federal para suspender a eficácia, em todo ou em parte, das leis declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal (art. 91, IV, da Constituição de 1934, correspondente ao art. 52, X, da atual Constituição de 1988). Nesse contexto, declarando o STF a inconstitucionalidade de uma lei, oficia o Senado Federal para que edite uma resolução que suspenda, de modo geral, a eficácia de tal lei, que não mais poderá ser aplicada no território nacional.

O segundo estágio evolutivo se deu com a edição, em 26 de novembro de 1965, da Emenda Constitucional no 16 à Constituição de 1946, que instituiu a chamada “representação de inconstitucionalidade”. Por meio de tal representação, o Procurador-Geral da República – chefe do Ministério Público Federal, com atuação perante o STF – podia requerer a declaração de inconstitucionalidade de uma lei diretamente ao órgão de cúpula do Poder Judiciário, cuja decisão – no sentido da procedência da representação – operava a retirada da norma declarada inconstitucional do ordenamento jurídico brasileiro. Com tal novidade, inaugurou-se, no sistema brasileiro de controle de constitucionalidade uma modalidade de controle abstrato – dissociado de um caso concreto – e concentrado, já que somente o STF era o competente para o julgamento da representação, cuja decisão – como visto – tinha efeitos gerais.

Quase doze anos mais tarde, em 13 de abril de 1977, foi promulgada a Emenda Constitucional no 7 à Constituição de 1967, que criou a “representação interpretativa”, por meio da qual o Procurador-Geral da República poderia requerer ao STF que determinasse qual a interpretação constitucionalmente adequada de uma norma legal, sendo que a interpretação dada pelo Supremo deveria ser observada por todos os demais órgãos do Poder Judiciário, pois era dotada de “força vinculante”.

A Assembleia Nacional Constituinte de 1987 e 1988 trabalhou, assim, num contexto em que já conviviam, no ordenamento jurídico brasileiro, os sistemas norte-americano e europeu de controle de constitucionalidade, sendo natural – portanto – que mantivesse essa coexistência, como efetivamente acabou por manter. Destarte, a Constituição promulgada em 5 de outubro de 1988 continuou a prever a possibilidade de qualquer juiz declarar a inconstitucionalidade das leis, sendo o STF – em sede recursal – o órgão responsável por conferir unidade e coerência a essa função do Poder Judiciário como um todo; bem como manteve o texto constitucional vigente a possibilidade de acesso direto e em abstrato ao Supremo.

 

É essa a síntese que faz Luís Roberto Barroso da disciplina constitucional de 1988 acerca do controle de constitucionalidade das leis:

 

“A Constituição de 1988 manteve o sistema eclético, híbrido ou misto, combinando o controle por via incidental e difuso (sistema americano), que vinha desde o início da República, com o controle por via principal e concentrado, implantado com a EC n. 16⁄65 (sistema continental europeu). Trouxe, todavia, um conjunto relativamente amplo de inovações, com importantes consequências práticas, dentre as quais podem ser destacadas: a) a ampliação da legitimação ativa para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade (art. 103); b) a introdução de mecanismos de controle de  inconstitucionalidade por omissão, como a ação direta com esse objeto (art. 103, § 2o) e o mandado de injunção (art. 5o, LXXI); c) a recriação da ação direta de inconstitucionalidade em âmbito estadual, referida como representação de inconstitucionalidade (art. 125, § 4o); d) a previsão de um mecanismo de arguição de descumprimento de preceito fundamental (art. 102, § 1o); e) a limitação do recurso extraordinário às questões constitucionais (art. 102, III)”.

Passados cinco anos da promulgação da Constituição de 1988, a Emenda Constitucional no 3 trouxe mais uma inovação: a ação declaratória de constitucionalidade. Por meio de tal ação, pode-se requerer que o Supremo Tribunal Federal declare a compatibilidade de uma lei frente à Constituição, desde que essa lei esteja sendo objeto de relevante controvérsia judicial quanto a sua constitucionalidade. A decisão no STF em sede de ação declaratória tem efeitos vinculantes, o que faz com que seu conteúdo seja obrigatoriamente observado pelos órgãos do Judiciário e da Administração.

Em 1999, foram editadas duas leis importantes para a regulamentação do controle de constitucionalidade no Brasil. A primeira, a Lei no 9.868, regula o processo de julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade e das ações declaratórias de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. Tal lei tem duas inovações de extrema relevância: em primeiro lugar, estendeu para as decisões em ação direta de inconstitucionalidade os efeitos vinculantes que somente existiam nas decisões em ação declaratória de constitucionalidade; ademais, previu a possibilidade de o STF, por votação de dois terços de seus membros, modular no tempo as decisões de inconstitucionalidade, permitindo que a nulidade da lei inconstitucional seja relativizada por força da segurança jurídica ou do interesse social.

A segunda lei editada em 1999, a Lei no 9.882, regulou o processo da arguição de descumprimento de preceito fundamental, transformando esse instituto em verdadeira ação direta voltada a impugnar atos estatais que não poderiam ser objeto de ação direta de inconstitucionalidade ou de ação declaratória de constitucionalidade. Com isso, é possível hoje levar-se diretamente ao STF a discussão acerca da inconstitucionalidade de leis municipais, de decisões judiciais, de decretos regulamentares, entre outros atos de poder.

Finalmente, com a edição da Emenda Constitucional no 45, de 30 de dezembro de 2004, o modelo de controle de constitucionalidade brasileiro chegou a sua configuração atual. Essa emenda à Constituição de 1988 ampliou os legitimados ativos para a ação declaratória de constitucionalidade, restringiu a formalização do recurso extraordinário aos casos com repercussão geral e instituiu a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal editar súmulas vinculantes, por meio das quais certas orientações jurisprudenciais passaram a ser obrigatórias para o Judiciário e para a Administração.

A breve evolução traçada no presente tópico demonstra, desde logo, a complexidade do sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, que, além de prever a coexistência dos modelos norte-americano e europeu, contempla também diversos instrumentos processuais para se cotejar os atos normativos com a Constituição. Essa pluralidade de vias processuais gera, por óbvio, uma grande carga de demandas perante o STF, o que é reforçado pela natureza analítica da Constituição de 1988, como será a seguir analisado.

 

2.2 – Parâmetro de controle: quais são as normas constitucionais no Brasil?

 

A dinâmica da jurisdição constitucional no Brasil é em muito afetada pela natureza da Constituição de 1988, que se apresenta como uma constituição analítica, ou seja, uma constituição altamente detalhista, que dispõe sobre os mais variados assuntos e transcende o rol de assuntos tradicionalmente associados à organização fundamental do Estado e à declaração de direitos e garantias fundamentais.

Sendo a Constituição de 1988 altamente detalhista e extensa, o padrão de controle de constitucionalidade verificado no Brasil é igualmente amplo, o que aumenta o campo da jurisdição constitucional. A equação é simples: um texto constitucional extenso reduz a liberdade de disposição do legislador ordinário, aumentando as chances de as leis por ele produzidas apresentarem vícios de inconstitucionalidade.

As normas constitucionais brasileiras compreendem, pelo menos, quatro espécies de disposições: as normas do corpo permanente do texto constitucional, as normas do ato das disposições constitucionais transitórias, as normas isoladas de emendas constitucionais e os tratados de direitos humanos incorporados ao ordenamento brasileiro com força constitucional.

O corpo permanente da Constituição de 1988 é composto por 255 artigos, muitos dos quais com várias subdivisões. O art. 5o, por exemplo, responsável pela enumeração das liberdades individuais, tem 78 incisos. O art. 37, relativo à Administração Pública, tem 22 incisos e 12 parágrafos.

O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), por sua vez, conta com 100 artigos e deveria disciplinar questões relacionadas à transição do regime constitucional de 1967 para a vigência da Constituição de 1988. Entretanto, por meio de diversas emendas, novas matérias foram introduzidas nas disposições transitórias, como é o caso dos arts. 54-A e 92-A, introduzidos no ADCT, respectivamente, por força das Emendas Constitucionais no 78 e no 83, ambas promulgadas em 2014. As normas do ADCT são, para todos os efeitos jurídicos, normas constitucionais e servem, portanto, como parâmetro para o controle de constitucionalidade das leis.

Na prática legislativa brasileira há ainda um fenômeno curioso: algumas emendas constitucionais não se limitam a alterar o texto permanente da Constituição ou o ADCT, mas contêm disposições próprias, que vigoram como normas isoladas da própria emenda constitucional. Assim, por exemplo, o art. 11 da Emenda Constitucional no 20, de 1998, regula – sem ter sido incorporada ao texto permanente ou ao ADCT – a possibilidade de acumulação de uma aposentadoria paga pelos cofres públicos com o salário de um cargo público para o qual tenha o servidor aposentado feito concurso. Há situação em que novas emendas constitucionais alteram esses dispositivos isolados de emendas constitucionais, como recentemente ocorreu com a Emenda Constitucional no 79, de 27 de maio de 2014, que alterou o art. 31 da Emenda Constitucional no 19, de 1998.

Por fim, a Emenda Constitucional no 45, de 2004, introduziu um novo parágrafo no art. 5o da Constituição. Segundo esse § 3o do art. 5o, os tratados de direitos humanos que forem incorporados ao direito brasileiro com as mesmas formalidades requeridas para a aprovação de uma emenda constitucional terão força de normas constitucionais. Até o presente momento, somente um tratado foi incorporado seguindo essas formalidades: a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, promulgada pelo Decreto no 6.949, de 25 de agosto de 2009. Com isso, os 50 artigos da mencionada convenção e 18 artigos de seu protocolo passaram a vigorar no Brasil com força de normas constitucionais, podendo servir de parâmetro de controle de constitucionalidade das leis.

A pluralidade de normas constitucionais no Brasil levou o STF a afirmar a existência de um “bloco de constitucionalidade” brasileiro, seguindo a ideia surgida no constitucionalismo francês. No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no 514, o STF ressaltou a importância da definição adequada do bloco de constitucionalidade para o correto exercício do controle de constitucionalidade:

“A definição do significado de bloco de constitucionalidade – independentemente da abrangência material que se lhe reconheça (a Constituição escrita ou a ordem constitucional global) – reveste-se de fundamental importância no processo de fiscalização normativa abstrata, pois a exata qualificação conceitual dessa categoria jurídica projeta-se como fator determinante do caráter constitucional, ou não, dos atos estatais contestados em face da Carta Política” (ADI 514, Rel. Min. Celso de Mello, decisão publicada no DJ de 28.03.2008).

Existe, portanto, um universo bastante amplo de normas constitucionais no Brasil, universo esse que igualmente se apresenta como instável. É que, apesar de o texto constitucional prever um rito diferenciado e pretensamente complexo para a alteração do texto constitucional, as emendas à Constituição são algo corriqueiro no processo legislativo brasileiro.

Até o presente momento, passados 26 anos da promulgação da Constituição de 1988, foram aprovadas 83 emendas constitucionais, às quais se somam outras 6, chamadas de emendas de revisão, aprovadas no período excepcional de revisão constitucional previsto no art. 3o do ADCT.

O número exacerbado de emendas constitucionais é, certamente, reflexo da natureza analítica do texto constitucional de 88, que trouxe para o nível constitucional diversas matérias que, tipicamente, seriam de leis ordinárias. Assim, a alteração de questões menores, relacionadas, por exemplo, ao regime jurídico de servidores públicos ou às garantias previdenciárias, demandam emendas à Constituição. Tanto é assim que já se chegou a afirmar que, no Brasil, não se governa por leis, mas sim por emendas à Constituição.

A facilidade com que se altera o texto constitucional no Brasil coloca em xeque a própria rigidez da Constituição de 1988, pelo menos numa dimensão material, já que se segue, sob o prisma formal, um procedimento diferenciado e complexo para a edição de emendas.

Isso faz com que, não raro, um processo de controle de constitucionalidade perca seu objeto pela alteração superveniente do padrão de controle. Assim, a jurisprudência do STF indica que a mudança da norma constitucional que enseja o pedido de declaração de inconstitucionalidade faz com que o processo de controle concentrado fique prejudicado, não podendo mais ser julgado, e as questões controversas pendentes somente poderão ser objeto de apreciação na via do controle difuso.

 

2.3 – O Supremo Tribunal Federal (STF): composição e funcionamento.

 

O Supremo Tribunal Federal brasileiro é composto por 11 juízes, que têm o título de “Ministro”, nomeados pelo Presidente da República, após aprovação da indicação pelo Senado Federal. Os nomeados devem ter entre 35 e 65 anos, bem como devem preencher os requisitos constitucionais do notável saber jurídico e da reputação ilibada (art. 101 da Constituição de 1988). Os ministros do STF, apesar de serem vitalícios, deixam o exercício de suas funções aos 70 anos, por conta da aposentadoria compulsória.

O processo de nomeação dos magistrados da Suprema Corte brasileira segue o modelo de sua matriz institucional, a Suprema Corte dos Estados Unidos da América. Entretanto, ao contrário do que se dá no Senado norte-americano, o Senado brasileiro não tem a tradição de realizar um controle rígido das nomeações para o STF, sendo as arguições dos candidatos – na maioria das vezes – mera formalidade. Na história republicana brasileira, somente cinco indicações foram rejeitadas pelo Senado, todas durante o mandato do Presidente Floriano Peixoto (1891-1894).

Nos anos de 2012 e 2013, foram nomeados dois novos magistrados para o Supremo Tribunal Federal: os Ministros Teori Zavascki e Roberto Barroso.

O STF funciona por meio de três órgãos jurisdicionais, o Plenário, composto por seus 11 ministros e duas Turmas de julgamento, compostas cada uma delas por 5 ministros, das quais não participa o Presidente do tribunal. Cada um desses órgãos jurisdicionais tem suas competências definidas pelo Regimento Interno do STF, podendo ocorrer – caso assim deliberem os membros de uma Turma – a remessa de um feito diretamente ao Plenário.

Os julgados analisados ao longo destes estudo são, em sua maioria, oriundos do Plenário, já que somente o órgão jurisdicional pleno pode declarar a inconstitucionalidade das leis, por força da cláusula da reserva de plenário, inscrita no art. 97 da Constituição de 1988. Ademais, é praxe que os temas polêmicos ou que ainda não tenham sido enfrentados pelo STF sejam inicialmente examinados pelo Plenário.

Ordinariamente, os processos registrados no STF são distribuídos entre os 10 ministros que compõem as Turmas, excluindo dessa distribuição geral o Presidente, que tem competências jurisdicionais próprias. O ministro a quem o processo foi distribuído torna-se seu “relator”, passando a exercer importantes funções na condução do feito. O relator é o responsável pelo exame dos documentos acostados aos autos e da avaliação preliminar acerca das condições que permitem a apreciação da demanda pelo STF, sendo que é facultado ao relator, em decisão monocrática, negar seguimento a um processo que não reúna os requisitos legais ou regimentais de tramitação. Ademais, sendo a matéria pacificada no STF, pode o relator decidir monocraticamente o mérito do processo, somente submetendo sua decisão aos colegas no caso de recurso.

O relator é ainda o responsável por determinar o momento em que o caso está pronto para julgamento, incluindo-o na lista de processos a serem apreciados pelo Plenário ou por uma das Turmas, de acordo com a pauta elaborada pelo respectivo Presidente.

Na sessão de julgamento, o relator tem a importante função de informar os demais ministros acerca da controvérsia que se apresenta nos autos em análise, fazendo uma narrativa de todos os incidentes processuais e de todas as alegações formalizadas pelas partes. Após a apresentação do relatório, os advogados das partes têm, em regra, 15 minutos para suas sustentações orais, às quais se segue o voto do relator. Encerrado o voto do relator, inicia-se a fase de debates ou a imediata colheita dos votos dos demais ministros, que – tendo dúvidas sobre o caso – podem pedir vista dos autos, adiando o término do julgamento para outra sessão de julgamento.

Tendo todos os ministros manifestado seus votos, o Presidente proclama o resultado do julgamento, cabendo ao relator – caso integre a maioria – proceder à redação do acórdão, que no STF segue o modelo seriatim, com a reunião de todas as manifestações dos julgadores sobre o feito. Caso o relator integre a minoria, a redação do acórdão cabe ao ministro que tenha apresentado o primeiro voto no sentido da tese vencedora.

Por fim, quanto à dinâmica dos julgamento no Supremo, é importante registrar que são eles públicos, ou seja, os ministros discutem e deliberam em sessões abertas, com a presença das partes e de seus advogados; sessões essas que são transmitidas para todo o território nacional pelo rádio e pela TV Justiça, que é uma emissora pública de televisão controlada pelo STF, fundada em 2002 com o objetivo de divulgar e democratizar os trabalhos do Poder Judiciário.  

No que toca às atribuições, a Constituição de 1988, seguindo a orientação dos textos constitucionais que a antecederam, conferiu ao STF um conjunto bastante amplo de competências, que se encontram enumeradas no art. 102. Basicamente, essas competências podem ser classificadas como originárias e recursais, que – somadas – acabam por conferir ao Supremo brasileiro o poder de julgar mais de 30 diferentes tipos de feitos processuais.

O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, tem a competência de julgar originariamente os processos criminais envolvendo parlamentares, o Presidente e o Vice-Presidente da República, seus próprios membros e o Procurador-Geral da República (art. 102, I, b, da Constituição); assim como ações em que a União litiga com os Estados federados (art. 102, I, f, da Constituição).

A competência recursal, por sua vez, divide-se entre a ordinária e a extraordinária, essa última mais relevante para o estudo que ora se desenvolve. Isso porque é por meio do recurso extraordinário (RE), previsto no inciso III do art. 102 da Constituição de 1988, que as discussões sobre constitucionalidade travadas nas instâncias inferiores chegam ao STF.

O recurso extraordinário é, historicamente, a classe processual que mais ocupa os trabalhos do Supremo Tribunal Federal. Nos anos compreendidos nesta pesquisa – 2012 e 2013 –, foram registrados no Tribunal 119.178 recursos extraordinários ou recursos extraordinários com agravo, dos quais foram julgados 114.461.

Após a Emenda Constitucional no 45, de 2004, o STF passou a contar com um instrumento de racionalização de sua competência recursal extraordinária, consubstanciado no instituto da repercussão geral. De acordo com o § 3º do art. 102 da Constituição, “no recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros”.

Desse modo, o STF passou a ter a possibilidade de recusar o julgamento de algum recurso cuja repercussão não seja relevante para o direito brasileiro. Por outro lado, o Código de Processo Civil passou a prever, nos seus arts. 543-A e 543-B, um rito processual especial para os recursos em que tal repercussão geral tenha sido reconhecida, em especial nos casos em que questão jurídica objeto da controvérsia se reproduz em diversos outros recursos.

No julgamento desses recursos extraordinários com repercussão geral, o STF admite a intervenção de amici curiae, uma vez que a decisão nele tomada terá efeitos para além das partes envolvidas na relação processual subjetiva. A decisão do STF no caso com repercussão geral é aplicada a todos os processos com idêntica fundamentação jurídica, tanto os que estão no próprio Supremo, quanto os que ainda se encontrem nos Tribunais inferiores, aguardando a decisão do órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro.

No que se refere às competências originárias, as classes processuais mais relevantes para pesquisa aqui desenvolvida são a ação direta de inconstitucionalidade (ADI), a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO), a ação declaratória de constitucionalidade (ADC), a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) e o mandado de injunção (MI).

(…)

 

3- A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em 2012-2013.

 

Analisada a estrutura e o modo de funcionamento do STF, cabe em seguida o exame detalhado dos principais julgados da Corte no período compreendido pela presente pesquisa, qual seja, os anos de 2012 e 2013.

Essa resenha de julgamentos seguirá uma linha temática de organização, o que fará – em alguns casos – que precedentes mais recentes sejam apresentados antes de outros, mais antigos. Não será procedida, portanto, uma ordem cronológica, mas sim um critério material, que dará ao texto uma coerência interna.

Desse modo, os precedentes serão agrupados nos seguintes grandes temas: direitos fundamentais (item 3.1), organização do Estado e dos poderes (item 3.2), garantias constitucionais no processo penal (item 3.3) e direitos políticos (item 3.4).

 

3.1 – Direitos fundamentais.

 

Nos anos de 2012 – 2013, podem ser destacadas três questões relacionadas aos direitos fundamentais que despertaram grande interesse, tanto no STF quanto na comunidade acadêmica brasileira: o combate à violência doméstica, por meio da denominada “Lei Maria da Penha”, cuja constitucionalidade foi apreciada pelo Supremo; a discussão sobre a possibilidade de interrupção lícita das gestações de fetos acometidos de anencefalia e, por fim, a constitucionalidade das políticas de ações afirmativas em favor de minorias na seleção para ingresso em universidades.

 

3.1.1 – “Lei Maria da Penha”: a questão da violência doméstica.

 

(…)

Em 9.2.2012, o Supremo Tribunal Federal foi instado a se pronunciar acerca da constitucionalidade da Lei nº 11.340/2006, batizada como Lei “Maria da Penha” em deferência à Senhora Maria da Penha Maia Fernandes,  vítima de violência doméstica que ficou paraplégica após ter sido brutalmente violentada pelo seu então marido.

A decisão do STF nesse caso é importantíssima, tendo em vista o alto índice de violência doméstica identificado no Brasil e significou uma verdadeira ação afirmativa (discriminação positiva) em favor de um grupo vulnerável. Como será adiante observado, o Supremo não se restringiu – nos anos compreendidos por esta resenha – à proteção de mulheres, mas, em outros julgados, resguardou direitos de negros e de homossexuais.

O princípio da igualdade ficou sob os holofotes da Corte, que foi desafiada a analisar se a referida lei, ao prever tratamento diferenciado para a mulher vítima de violência doméstica, teria violado o princípio da isonomia. E deve-se desde logo adiantar que a resposta foi taxativamente negativa.

Por outro lado, a Corte se pronunciou acerca da natureza da ação penal na hipótese de violência doméstica contra a mulher. A dúvida surgiu porque, caso classificada como ação penal pública incondicionada, a persecução criminal não dependeria da vontade da vítima, mas apenas do Estado, no caso, o Ministério Público (dominus litis).

Finalmente, a Corte avaliou a possibilidade de tais crimes serem julgados pelos Juizados Especiais, que são instâncias judiciais brasileiras caracterizadas por procedimentos com menor formalismo, com emprego da oralidade e, por isso mesmo, mais céleres.

A Constituição Federal prevê em seu art. 226, § 8º, que “o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”.

O STF revelou-se sensível aos distintos papéis representados pelos integrantes da família, os quais ostentam, via de regra, necessidades assistenciais distintas, a depender da posição que ocupam no âmbito familiar. Sob esse prisma, admitiu-se que, no Brasil, muitas vezes, a cultura machista e patriarcal desfavorece o gênero feminino, o que revela um estágio retardado em termos de processo civilizatório.

Duas foram as ações ajuizadas: a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 19 – na qual a Presidência da República pediu a declaração da constitucionalidade dos artigos 1º, 16, 33 e 41 da Lei nº 11.340/2006 – e a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.424, na qual a Procuradoria-Geral da República questionou o inciso I do artigo 12, bem como o teor dos artigos 16 e 41 da lei.

Cumpre registrar que a principal justificativa da ADC proposta pela Presidência da República foi a manifesta negativa de aplicação da lei por parcela de juízes estaduais, que a reputavam inconstitucional em virtude da aparente discriminação conferida ao homem, já que a proteção restringia-se apenas às mulheres.

Ao final, a ADC 19 foi julgada procedente por unanimidade, ou seja, o STF declarou constitucional o art. 1º da Lei, refutando a violação do princípio da igualdade.

No que tange à esse ponto específico o relator, Ministro Marco Aurélio, manifestou-se no sentido de que a mulher é mais vulnerável a constrangimentos físicos, morais e psicológicos sofridos em âmbito privado, ponderando que “não há dúvida sobre o histórico de discriminação por ela enfrentado na esfera afetiva. As agressões sofridas são significativamente maiores do que as que acontecem – se é que acontecem – contra homens em situação similar”. Daí por que admitido o discrímen à luz do artigo 226, § 8º, da Constituição Federal.

Segundo o relator, a posição vulnerável das mulheres no ambiente familiar exige proteção estatal, pois “ao criar mecanismos específicos para coibir e prevenir a violência doméstica contra a mulher e estabelecer medidas especiais de proteção, assistência e punição, tomando como base o gênero da vítima, utiliza-se o legislador de meio adequado e necessário visando fomentar o fim traçado pelo artigo 226, § 8º, da Carta Federal”.

Na análise da compatibilidade da discriminação em favor das mulheres, instituída pela Lei Maria da Penha, e a Constituição Federal, o STF fez uso ainda de referenciais de direito internacional, em especial dos tratados de que o Brasil é signatário. Nesse quadro, o voto do Ministro Marco Aurélio, faz menção à Convenção de Belém do Pará, por meio da qual o Estado brasileiro assumiu o compromisso de coibir a violência doméstica contra a mulher.

Ainda no que toca à contribuição do direito internacional para o deslinde do caso em análise, o STF trouxe à colação, no voto da Ministra Rosa Weber, precedente da Corte Europeia de Direitos do Homem, como se pode verificar nas seguintes considerações:

 

Sobre os desafios hermenêuticos apresentados pela urgência na concretização dos direitos fundamentais demandada na contemporaneidade, têm se debruçado não só as Cortes constitucionais das mais diversas jurisdições nacionais, mas também as Cortes integrantes dos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos. Pode-se afirmar que a evolução de praticamente todas as democracias constitucionais modernas converge para uma compreensão do princípio da igualdade segundo a qual, na precisa definição da Corte Europeia de Direitos Humanos, “discriminação significa tratar diferentemente, sem um objetivo e justificativa razoável, pessoas em situação relevantemente similar” (Willis vs. Reino Unido, § 48, 2002; Okpisz vs. Alemanha, § 33, 2005). Contrario sensu, deixar de tratar diferentemente, sem um objetivo e justificativa razoável, pessoas em situação relevantemente diferente, também é discriminar”

 

O Supremo fez uso, ainda, de um referencial principiológico, como se pode depreender, mais uma vez, do voto condutor do Ministro Marco Aurélio:

“Sob a óptica constitucional, a norma também é corolário da incidência do princípio da proibição de proteção insuficiente dos direitos fundamentais, na medida em que ao Estado compete a adoção dos meios imprescindíveis à efetiva concretização de preceitos contidos na Carta da República. A abstenção do Estado na promoção da igualdade de gêneros e a omissão no cumprimento, em maior ou menor extensão, de finalidade imposta pelo Diploma Maior implicam situação da maior gravidade político-jurídica, pois deixou claro o constituinte originário que, mediante inércia, pode o Estado brasileiro também contrariar o Diploma Maior.

A Lei Maria da Penha retirou da invisibilidade e do silêncio a vítima de hostilidades ocorridas na privacidade do lar e representou movimento legislativo claro no sentido de assegurar às mulheres agredidas o acesso efetivo à reparação, à proteção e à Justiça. A norma mitiga realidade de discriminação social e cultural que, enquanto existente no país, legitima a adoção de legislação compensatória a promover a igualdade material, sem restringir, de maneira desarrazoada, o direito das pessoas pertencentes ao gênero masculino. A dimensão objetiva dos direitos fundamentais, vale ressaltar, reclama providências na salvaguarda dos bens protegidos pela Lei Maior, quer materiais, quer jurídicos, sendo importante lembrar a proteção especial que merecem a família e todos os seus integrantes”.

É importante anotar que o STF não negou a possibilidade de também o homem poder ser vítima de violência doméstica e familiar, contudo, somente a mulher é beneficiária da proteção legal diferenciada, porquanto considerada hipossuficiente no âmbito familiar. O Código Penal, legislação comum, é que tutela o gênero masculino. Aplicou-se, na hipótese, a conhecida máxima de Aristóteles de que quando se trata desigualmente os desiguais, promove-se a igualdade material em detrimento da igualdade formal.

Por seu turno, o Ministro Ayres Britto destacou a necessidade de se realizar uma espécie de “constitucionalismo fraterno”, a partir da remoção de preconceitos incompatíveis com a Constituição Federal de 1988 considerando que “o grau de civilização de um povo mede-se pelo grau de proteção da mulher”.

Quanto à polêmica relacionada com a natureza da ação, decidiu o STF que, em casos de crime doméstico, a ação é pública incondicionada, independentemente da gravidade da lesão. Assim, sempre que aplicável a Lei Maria da Penha, o Ministério Público está habilitado a iniciar a persecução criminal, sem necessidade de manifestação da vítima.

Em outras palavras, é dispensável no caso de violência doméstica perpetrada contra a mulher o aval da vítima para possibilitar a punição estatal. Em verdade, esta poderia, após a agressão, desistir da acusação, muitas vezes por ainda estar submetida a ameaças físicas e psicológicas do seu algoz. Desse modo, reconheceu-se o dever do Estado em evitar que a violência se agravasse ou pior, se perpetuasse.

Os ministros concluíram que deixar a intervenção estatal a critério da vítima do crime de lesão corporal esvaziaria a proteção conferida pela lei. Nesse sentido, o STF ampliou a proteção conferida às mulheres.

 

3.1.2 – Crime de aborto e interrupção da gestação de anencéfalos.

 

É possível afirmar que o exame da possibilidade de interrupção da gestação de fetos acometidos de anencefalia, sem a incidência das sanções penais do crime de aborto, ensejou um dos mais importantes julgamentos da história do Supremo Tribunal Federal.

No dia 12.4.2012, o STF retomou o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no 54, iniciado em 2004. Tal ação foi proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, representada pelo advogado Luís Roberto Barroso, que em 2013 viria a ser nomeado para o STF. Segundo os argumentos apresentados ao Tribunal pela autora, buscava-se aliviar o sofrimento das gestantes de fetos anencéfalos.

Nos autos, a tese contrária à da confederação autora foi defendida, essencialmente, por grupos religiosos, entre os quais a Igreja Católica, que – em síntese – defendiam os seguintes argumentos: a) o feto deve ser considerado um ser humano e ter seu direito à vida respeitado; b) haveria potencialidade de sobrevivência extrauterina, mesmo para os acometidos de anencefalia; c) a legalização do aborto de fetos anencefálicos representaria o primeiro passo para a legalização ampla e irrestrita dos abortos no Brasil, e d) o aborto de fetos anencefálicos seria um tipo de aborto eugênico, buscando a eliminação de indivíduos com deficiências físicas ou mentais, com intuito de purificação da espécie.

Buscando fundamentar de modo objetivo o posicionamento do Tribunal, o relator da ADPF, Ministro Marco Aurélio, fazendo uso de uma faculdade introduzida pela Lei 9.868, de 1999, realizou quatro audiências públicas, reunindo a comunidade científica, órgãos governamentais e diferentes segmentos da sociedade civil.

Finalmente em 2012, o Supremo explicitou que as gestantes possuem o direito de optar pela antecipação do parto nos casos em que o feto sofre de anencefalia, afastando-se a alegação de que a interrupção da gravidez de feto anencéfalo configuraria crime de aborto, cujo regime jurídico consta dos artigos 124 a 128 do Código Penal.

O tribunal reforçou o entendimento tradicional no constitucionalismo republicano brasileiro acerca da laicidade do Estado, de modo que crenças religiosas não poderiam influenciar a decisão do Tribunal no caso em questão.

Por 8 votos a 2, ou seja, por maioria expressiva, a Corte, a partir da interpretação da Constituição Federal, assentou que a hipótese de interrupção da gravidez de fetos anencéfalos não poderia se subsumir ao tipo penal do aborto, que pressupõe a possibilidade do nascimento com vida, na qual está incluída a vida cerebral, totalmente inviabilizada no caso concreto. No ponto ficaram vencidos os ministros Ricardo Lewandowski — que sustentou o argumento de que a Corte estaria indevidamente criando normas, potencialmente aplicáveis a diversas outras hipóteses de malformação — e Cezar Peluso, que externou uma divergência enfática a partir do ponto de vista de que se deveria proteger a vida e a dignidade humana do feto, em quaisquer condições.

A despeito dos diferentes enfoques, todos os ministros que integraram a maioria destacaram que o direito à antecipação do parto decorre diretamente de um conjunto de preceitos fundamentais, com ênfase na dignidade da pessoa humana. Ao final, refutaram eventual alegação de que a Corte estaria invadindo algum espaço reservado à esfera política.

A partir da existência de consenso científico quanto à segurança do diagnóstico e à inviabilidade de vida após o parto, obtemperou-se que seria um ato de manifesta violência estatal obrigar as mulheres a prosseguirem na gestação fadada ao insucesso. Por sua vez, a Corte assentou a ausência de respaldo constitucional à determinação de observância de determinado padrão ético ou religioso. O relator reforçou o caráter laico do Estado brasileiro, assegurado desde a Carta Magna de 1891, quando da transição do Império à República. “A questão posta nesse processo – inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual configura crime a interrupção de gravidez de feto anencéfalo – não pode ser examinada sob os influxos de orientações morais religiosas”, frisou.

Desse modo, assegurou-se aos médicos que realizam a cirurgia e às gestantes que decidem livremente interromper a gravidez de feto anencéfalo a licitude da conduta. É dizer, o diagnóstico da anencefalia é suficiente ao procedimento, o qual independe, a partir do julgamento em análise, de uma prévia autorização judicial. Isso porque a Corte enfatizou que, sendo o feto absolutamente inviável fora do útero, não seria titular do direito à vida.

O voto do ministro relator, que, ao final, prevaleceu, defendeu  que o conflito entre direitos fundamentais – quais sejam, os direitos da mulher e os do feto – seria meramente aparente. Assevera, a respeito dessa premissa, que a Lei nº 9.434/1997 define a morte cerebral para fins de transplante de órgãos, motivo pelo qual conclui que o feto anencéfalo já é presumidamente morto do ponto de vista jurídico. Tanto o anencéfalo, como o paciente com morte cerebral, não possuem atividade cortical ou apresentam função superior do sistema nervoso central, o que imporia a mesma solução jurídica. Em outros termos, não haveria motivo para a proteção à vida em potencial porque sequer existiria tal potencial.

De outra parte, destacou que obrigar a mulher a manter uma gestação dessa natureza significaria impor uma espécie de “cárcere privado em seu próprio corpo”, deixando-a desprovida do mínimo essencial de autodeterminação, o que, por vias transversas, se assemelharia à tortura. “Cabe à mulher, e não ao Estado, sopesar valores e sentimentos de ordem estritamente privada, para deliberar pela interrupção, ou não, da gravidez”, afirmou o Ministro Marco Aurélio, acrescentando estar em jogo a privacidade, a autonomia e a dignidade humana dessas mulheres, direitos fundamentais cujo respeito é inerente ao ser humano.

Devem ainda ser explicitados os fundamentos dos dois votos vencidos, dos ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso. O primeiro defendeu que caberia apenas ao Congresso Nacional autorizar a interrupção a gravidez de feto anencéfalo, bem como que o STF só poderia exercer o papel de legislador negativo. Lewandowski observou que o Congresso Nacional, se assim o desejasse, poderia ter alterado a legislação para incluir os anencéfalos nos casos em que o aborto não é criminalizado, mas até aquele momento não o fizera justamente porque se encontra profundamente dividido, o que refletiria, aliás, a abissal cisão da própria sociedade brasileira em torno da matéria. Ao final, demonstrou grande preocupação com a possibilidade de se permitir a interrupção da gestação de embriões com diversas outras patologias que gerassem mínima perspectiva de vida extrauterina à margem da lei.

 

Por sua vez, o Ministro Cezar Peluso argumentou que o feto tem direito à vida e este direito merece proteção incondicional, observando que o anencéfalo só pode morrer porque está vivo. Assinalou, ainda, que a questão dos anencéfalos deveria ser tratada com “cautela redobrada”, diante da imprecisão do conceito, das dificuldades do diagnóstico e dos dissensos em torno da matéria.

Peluso aduziu que os apelos para a liberdade e autonomia pessoais são “de todo inócuos” e “atentam contra a própria ideia de um mundo diverso e plural”. A discriminação que reduz o feto “à condição de lixo”, a seu ver, “em nada difere do racismo, do sexismo e do especismo”, demonstrando “a absurda defesa e absolvição da superioridade de alguns sobre outros”. Ao encerrar seu voto, o então presidente do STF ressaltou não incumbir àquela Corte atuar como legislador positivo, e que o Legislativo não incluiu o caso dos anencéfalos nas hipóteses excepcionalíssimas do art. 124 do Código Penal, que autorizam o aborto.

A importância do presente julgamento é evidente, exatamente por representar um marco histórico no que toca à definição dos contornos constitucionais do direito à vida, em especial do nascituro, e dos direitos reprodutivos. A partir do pronunciamento do STF, todas as brasileiras gestantes de fetos anencéfalos, que assim o desejarem, estão liberadas para interromper a gravidez por meio de procedimentos médicos, os quais não dependerão de autorização judicial. Assim sendo, nem paciente, nem o médico sofrerão qualquer imputação criminosa. O Plenário do STF, em decisão com eficácia erga omnes e efeito vinculante, assegurou a atipicidade da conduta. Não há, portanto, a partir da decisão, crime na interrupção da gravidez de um feto acometido de anencefalia.

 

3.1.3 – Ação afirmativa: reserva de vagas em universidades.

 

O direito fundamental à educação encontra previsão nos artigos 6º e 205 a 214 da Constituição Federal Brasileira. É dever do Estado e da família promover e incentivar a educação para permitir o desenvolvimento adequado dos indivíduos ao exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho.

Visando realizar tal mandamento constitucional, algumas universidades públicas instituíram sistemas de cotas étnico-raciais, reservando um percentual de vagas para seleção de estudantes que ostentassem características peculiares relativas a cor, etnia e classe social, definida pelo fato de serem egressos de escolas públicas.

A reserva de vagas em universidades públicas, com base em critérios étnicos-raciais, foi questionada na ADPF 186 proposta pelo Democratas, partido político de oposição ao Governo federal. A ação, julgada improcedente nos dias 25 e 26.4.2012 pelo Plenário do STF, teve como relator o Ministro Ricardo Lewandowski, que se debruçou especificamente acerca da questionada política de cotas da Universidade de Brasília (UNB), que reserva 20% das vagas para estudantes negros, concluindo, ao final, que políticas de ações afirmativas com base em critérios étnicos estão de acordo com a Constituição Federal.

Na petição inicial foi alegado que as cotas violariam o princípio da dignidade da pessoa humana, o repúdio ao racismo, o princípio da igualdade, o direito universal à educação e a meritocracia.

O Plenário decidiu que a Constituição não se restringe a proclamar a igualdade de todos perante a lei, mas a assegurar a igualdade de acordo com as diferenças de cada um. Recordou-se o histórico de discriminação racial vivenciado pelos negros brasileiros desde os tempos de escravidão e que as políticas afirmativas em favor de pessoas discriminadas representariam uma forma de atenuar uma situação tradicional de desigualdade, a fim de garantir idênticas oportunidades.

Essa política, para não se transformar em uma prática injusta, consagradora de um privilégio, deveria ser limitada no tempo. O relator afirmou que “os meios empregados e os fins perseguidos pela UNB são marcados pela proporcionalidade, razoabilidade e as políticas são transitórias, com a revisão periódica de seus resultados”. Como ponderou a ministra Rosa Weber, “quando o negro se tornar visível nas esferas mais almejadas das sociedades, política compensatória nenhuma será necessária”.

À luz do princípio da igualdade material, a Corte reconheceu a possibilidade de o Estado fomentar ações afirmativas destinadas a grupos sociais determinados como meio de garantir-lhes certas vantagens aptas a possibilitar a superação de desigualdades históricas, cujo resgate se impunha. Registrou-se que a política de reserva de vagas não seria sequer estranha à Constituição que prevê, em seu art. 37, VIII, a reserva de um percentual de cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência.

O Ministro Luiz Fux anotou que a Constituição, ao preconizar como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, inciso I), impõe uma reparação de danos pretéritos do Brasil em relação aos negros.  

Assim, os programas de ação afirmativa seriam uma forma de compensar a discriminação histórica, culturalmente arraigada, e, não raro, praticada de forma inconsciente e à sombra de um Estado complacente. As ações afirmativas, portanto, encerram também um relevante papel simbólico. Segundo a ministra Carmen Lúcia “as ações afirmativas não são a melhor opção mas são uma etapa. O melhor seria que todos fossem iguais e livres”. Sob esse enfoque, as políticas compensatórias precisam estar acompanhadas de outras políticas para não caracterizar, às inversas, preconceito. Para a Ministra, as ações afirmativas decorrem da responsabilidade social e estatal e são necessárias para a realização do princípio da igualdade.

 

Joaquim Barbosa sustentou que “não se deve perder de vista o fato de que a história universal não registra, na era contemporânea, nenhum exemplo de nação que tenha se erguido de uma condição periférica à condição de potência econômica e política, digna de respeito na cena política internacional, mantendo, no plano doméstico, uma política de exclusão em relação a uma parcela expressiva da sua população”. Assentou existir “no Direito Comparado, vários casos de medidas de ações afirmativas desenhadas pelo Poder Judiciário em casos em que a discriminação é tão flagrante e a exclusão é tão absoluta, que o Judiciário não teve outra alternativa senão, ele próprio, determinar e desenhar medidas de ação afirmativa, como ocorreu, por exemplo, nos Estados Unidos, especialmente em alguns estados do Sul”.

 

É importante ressaltar a natureza transitória das políticas de ação afirmativa, já que as desigualdades entre negros e brancos não resultam, como é evidente, de uma desvalia natural ou genética, mas decorrem de uma acentuada inferioridade em que aqueles foram posicionados nos planos econômico, social e político em razão de séculos de dominação.

 

Consoante afirmou o ministro Cezar Peluso há um déficit educacional e cultural dos negros, decorrente de barreiras institucionais de acesso às fontes de educação motivo pelo qual existe “um dever, não apenas ético, mas também jurídico, da sociedade e do Estado perante tamanha desigualdade, à luz dos objetivos fundamentais da Constituição”. Nesse contexto “há a responsabilidade ético-jurídica da sociedade e do Estado em adotar políticas públicas que respondam a esse déficit histórico, na tentativa de superar, ao longo do tempo, essa desigualdade material e desfazer essa injustiça histórica de que os negros são vítimas ao longo dos anos”.

 

No mesmo sentido da compatibilidade do sistema de cotas com o princípio da igualdade, o ministro Gilmar Mendes observou que a pequena quantidade de negros nas universidades é decorrente de um processo histórico, oriundo do modelo escravocrata de desenvolvimento, da baixa qualidade da escola pública e da “dificuldade quase lotérica” de acesso à universidade por meio do vestibular. Sob prisma análogo, restou enfatizado pelo ministro Marco Aurélio que “a meritocracia sem igualdade de pontos de partida é apenas uma forma velada de aristocracia”. Daí, a necessidade de fixação do sistema de cotas.

Assim, na medida em que essas distorções históricas forem sendo gradativamente corrigidas e a representação dos negros e demais excluídos nas esferas públicas e privadas for efetivada, não subsistirá a necessidade dos programas de reserva de vagas nas universidades públicas, tendo em vista a realização da igualdade jurídica, objetivo da opção política do legislador positivo.

Para o decano da corte, ministro Celso de Mello, as cotas fixadas na UNB são compatíveis com a Constituição e com os tratados internacionais de direitos humanos. “As políticas públicas têm na prática das ações afirmativas um poderoso e legítimo instrumento impregnado de eficácia necessariamente temporária, já que elas não deverão ter a finalidade de manter direitos desiguais depois de alcançados os objetivos”, mencionando que o modelo analisado é temporário e passará por reavaliação após dez anos.

A propósito, válido transcrever o dispositivo do voto:

“Isso posto, considerando, em especial, que as políticas de ação afirmativa adotadas pela Universidade de Brasília (i) têm como objetivo estabelecer um ambiente acadêmico plural e diversificado, superando distorções sociais historicamente consolidadas, (ii) revelam proporcionalidade e a razoabilidade no concernente aos meios empregados e aos fins perseguidos, (iii) são transitórias e prevêem a revisão periódica de seus resultados, e (iv) empregam métodos seletivos eficazes e compatíveis com o princípio da dignidade humana, julgo improcedente esta ADPF.”

 

Em 3 de maio de 2012, justamente uma semana após a Suprema Corte reconhecer a constitucionalidade das cotas raciais em universidades públicas, julgou-se a validade do chamado PROUni – o Programa Universidade Para Todos. A improcedência da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3.330, na qual se questionava Lei nº 11.096/2005, manteve intacto o referido programa que subsidia universidades privadas que ofereçam bolsas para alunos que cursaram o ensino médio em escolas públicas ou como bolsistas em escolas particulares, com renda familiar de até um e meio salário mínimo por pessoa (bolsa integral) ou até três salários mínimos per capita (bolsa parcial). Restou consagrada a política afirmativa cujo objetivo seria oferecer aos estudantes de baixa renda as mesmas oportunidades que os colegas de renda superior colocando-se em prática o princípio da igualdade.

Por  fim, registre-se que no dia 9.5.2012, o STF reiterou no julgamento do RE 597.285, em sede do regime de repercussão geral, que  “é constitucional o sistema de reserva de vagas (cotas), como forma de ação afirmativa de inclusão social, estabelecido para ingresso em cursos de universidades públicas”.

 

3.2 – Organização do Estado e dos poderes.

 

(…)

 

3.2.1 – “Precatórios” e a Emenda do Calote  

 

Quatro ações diretas de inconstitucionalidade – ADI 4.357, ADI 4.372, ADI 4.425 e ADI 4.400 – julgadas em 2013 ensejaram a declaração de inconstitucionalidade parcial da Emenda Constitucional nº 62/2009. Além da importância material do tema em si, relacionado ao adimplemento das obrigações decorrentes de condenações judiciais do Estado, é possível destacar dois importantes aspectos do pronunciamento da Corte Suprema, a saber: a realização de controle de constitucionalidade de emenda à Constituição, permitida no sistema constitucional brasileiro, e o modo como se deu a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade.

As quatro ações diziam com peculiar aspecto do regime constitucional brasileiro: os chamados precatórios. Precatório é um título que formaliza a requisição de pagamento de determinada quantia devida pela Fazenda Pública, em virtude de uma condenação judicial.  Em outras palavras, o precatório é uma ordem expedida pelo Juiz, para que o poder público inclua no orçamento do ano seguinte os valores de uma condenação judicial contra o Estado, para que no ano seguinte seja efetuado o pagamento.

Em regra, após a fase da execução judicial, o juiz, impulsionado pelo credor e ouvido o Ministério Público, emite um ofício ao presidente do tribunal ao qual está vinculado, e, por derradeiro, requer o pagamento do débito. As requisições recebidas no Tribunal até 1º de julho daquele corrente ano são autuadas como Precatórios, atualizadas naquela data e incluídas na proposta orçamentária do ano subsequente, devendo-se registrar que os orçamentos não têm, no Brasil, natureza impositiva.

Esse modelo vigora no Brasil desde a Constituição de 1934 (art. 182), que já exigia, no pagamento de precatórios, a observância rigorosa da ordem cronológica de expedição dos títulos pelo juízo competente. A Constituição de 1988 seguiu essa tradição, disciplinando o mecanismo dos precatórios em seu art. 100, acrescentando importante novidade: do seu texto decorre, na prática, uma dupla ordem cronológica, uma em favor dos precatórios relativos a créditos em geral, outra em favor dos precatórios relativos a créditos de natureza alimentícia.

A importância do estudo do tema é ressaltado por José Levi Mello do Amaral Júnior, ao afirmar que o “artigo 100 é possivelmente um dos dispositivos constitucionais mais modificados na história do constitucionalismo (não apenas o brasileiro)”.

A sucessão de Emendas Constitucionais explica-se, em boa medida, para tentar remediar uma situação reiterada na vida institucional brasileira, qual seja, a prática de o Estado se valer de suas prerrogativas para deixar de pagar os seus credores, fazendo com que os precatórios se acumulem no tempo, sem o devido pagamento.

Essa tradição marcadamente antirrepublicana incorporou-se “ao modo de ser” das Fazendas estaduais e municipais, que governo após governo, independentemente da ideologia, deixam acumular um passivo intimidador, cuja quitação cada dia se torna mais constrangedora para a sociedade civil.

Tal circunstância incomoda, sobremaneira, o Judiciário, exatamente pela razão de serem suas decisões condenatórias contra a Fazenda Pública esvaziadas pelo reiterado descumprimento das ordens de precatório.

Nesse contexto, a mencionada Emenda Constitucional 62 foi editada, sob o incentivo do então Presidente do STF, Ministro Nelson Jobim, como mais uma tentativa do constituinte derivado brasileiro para solucionar o problema do enorme passivo das Fazendas Públicas, com o intuito de garantir alguns direitos dos credores do Estado.

Pode-se resumir as inovações trazidas pela emenda da seguinte forma: houve a criação de um regime especial para pagamento de precatórios, que deveria ser disciplinado por meio de uma futura lei complementar, motivo pelo qual,  estabeleceu-se provisoriamente um regime transitório até a sua edição. A Emenda constitucional previu um parcelamento dos precatórios, vinculado a um certo limite de destinação percentual da receita líquida do ente federado, combinado com uma espécie de leilão invertido, por meio do qual poderiam ser quitados precatórios ofertados com deságio pelo credor (art. 100, § 15, da CF/1988, c/c o art. 97 do ADCT, ambos com a redação da EC 62/2009).

No julgamento das ações, o relator, Ministro Ayres Britto, entendeu que essas soluções “subverteriam os valores do Estado de Direito, do devido processo legal, do livre e eficaz acesso ao Poder Judiciário e da razoável duração do processo”. Por isso, votou pela inconstitucionalidade de quase toda a emenda, que recebeu o jocoso apelido de “emenda do calote”, por ferir os princípios da moralidade administrativa, da impessoalidade e da isonomia.

Segundo o entendimento do Supremo, esses princípios constitucionais seriam violados pela emenda já que não falta dinheiro para o adimplemento dos precatórios, mas sim, compromisso dos governantes em cumprir decisões judiciais. Além disso, enfatizou-se que configuraria atentado à razoabilidade e à proporcionalidade impor aos credores a sobrecarga de nova postergação temporal da quitação dos créditos que possuem direito a receber.

Analisando o julgado de modo mais preciso, é importante destacar que o julgamento foi dividido em duas partes: a primeira versou acerca das alterações do artigo 100 da Constituição; e a segunda sobre as modificações realizadas, também EC 62, no artigo 97 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

A importância do estudo acerca das reiteradas modificações no sistema de pagamento do precatório, segundo José Levi Mello do Amaral Júnior, se deve ao fato de que o “artigo 100 é possivelmente um dos dispositivos constitucionais mais modificados na história do constitucionalismo (não apenas o brasileiro)”.

 

Após a aposentadoria do Ministro Carlos Ayres Britto,  o Ministro Luiz Fux assumiu a relatoria do processo.

O STF ao enfrentar a alterações trazidas pela Emenda aos artigos 100 da Constituição Federal e 97 do ADCT, concluiu que:

(i) a “superpreferência” conferida aos precatórios alimentares de idosos, considerados aqueles com mais de 60 anos de idade, e des portadoras de doenças graves, constante do art. 100, § 2º, da CF/1988, com a redação da EC 62/2009, foi considerada constitucional.

Contudo, o STF considerou inconstitucional aferir a idade do beneficiário “na data da expedição do precatório”, por afronta ao princípio da igualdade. A Corte observou que a preferência relativa aos precatórios de idosos deveria ser estendida a todos os credores que completassem 60 anos ao longo da tramitação do rito, pois entre o dia em que o precatório é expedido e a data em que o título é efetivamente pago, via de regra, transcorrem muitos anos.

Por sua vez, o limite do valor a ser pago com prioridade para tais créditos alimentares, fixado no § 2º do art. 100 da Constituição Federal, foi considerado constitucional pelo STF. Com efeito, se o valor a receber pelo idoso ou doente grave superar o triplo do fixado em lei, parte dele será paga com superpreferência e a quantia remanescente será quitada na ordem cronológica de apresentação do precatório, pois, como regra, os débitos são pagos conforme a ordem cronológica em que os precatórios são apresentados dentro de cada uma das “filas” independentes.

(ii) a previsão de compensação forçada, no caso de o beneficiário do precatório ser devedor do Erário, garantida pelos §§ 9º e 10 do art. 100 da CF/88, foi julgada inconstitucional. O STF considerou desarrazoada a possibilidade de abatimento do valor a ser pago pela Fazenda Pública a título de precatório com possível dívida fiscal ou pública perante a Fazenda Pública.

 Para a Corte, os mencionados dispositivos violam os princípios da isonomia, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa e da separação de poderes, por privilegiar o pagamento de créditos do poder público, ao estabelecer uma enorme superioridade processual à Fazenda Pública, circunstância não conferida ao contribuinte comum. Pelos mesmos motivos, os ministros reconheceram a inconstitucionalidade do inciso II do parágrafo 9º do artigo 97 do ADCT.

No julgamento, o relator, Ministro Luiz Fux, afirmou que “esse tipo unilateral e automático de compensação de valores embaraçaria a efetividade da jurisdição, desrespeitaria a coisa julgada e afetaria o princípio da separação dos Poderes”.

(iii) Com o objetivo de evitar a perda do valor nominal do crédito, ou seja, a desvalorização do seu real valor em virtude da inflação, o § 5º do art. 100 determina que o precatório seja atualizado monetariamente no momento do pagamento definitivo. Contudo, os índices de correção monetária e juros moratórios previstos pela Emenda Constitucional nº 62/09  foram julgados inconstitucionais.

O STF declarou inconstitucional a expressão “índice oficial de remuneração básica de caderneta de poupança”, contida no parágrafo 12 do artigo 100 da Constituição, e repetida no inciso II do parágrafo 1º e no parágrafo 16, ambos do artigo 97 do ADCT.

A Corte salientou que a atualização monetária dos precatórios deve corresponder ao índice da real desvalorização da moeda, sendo certo que o índice oficial da poupança não seria apto a evitar a perda do poder aquisitivo da moeda, porquanto índice inadequado. O relator argumentou que a “atualização monetária dos débitos inscritos em precatório deveria corresponder ao índice de desvalorização da moeda, no fim de certo período”.  

Aliás, muito interessante anotar que o Poder Público tem seus créditos corrigidos pela taxa SELIC, cujo valor supera, em muito, o rendimento da poupança, reforçando-se o argumento de que a previsão do § 12 violaria, indiscutivelmente, a isonomia.

(iv) a EC nº 62/09 também acrescentou o § 15 ao art. 100, que permitiu ao legislador infraconstitucional, por meio de lei complementar, criar um regime especial para pagamento de precatórios dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dispondo sobre vinculações à receita corrente líquida, forma e prazo de liquidação. O objetivo do regime especial era, sem inviabilizar o orçamento dos entes federados, fomentar a redução da dívida  dos Estados, Distritos Federais e Municípios decorrentes da expedição de precatórios.

Esse “regime especial” foi provisoriamente tratado no art. 97 do ADCT o qual permitiu uma série de vantagens aos Estados e Municípios, autorizando os entes a realizarem uma espécie de “leilão de precatórios” no qual os credores de precatórios poderiam competir entre si oferecendo deságios (“descontos”) em relação aos valores que teriam direito a receber, com intuito de receber antecipadamente aquilo que lhe seria devido, numa espécie de negociação privada, excepcionando a regra do art. 100 da Constituição Federal de que os precatórios devem ser pagos na ordem cronológica de apresentação.

O Supremo declarou inconstitucionais tanto o § 15 do art. 100 da CF/88, como todo o art. 97 do ADCT, refutando a moratória, o parcelamento da dívida e o leilão negativo, que prejudicavam o credor.  

Por fim, o Plenário rejeitou a possibilidade de  pagamento dos precatórios em até 15 anos por subverter os valores do Estado de Direito, do devido processo legal, do acesso ao Judiciário e da razoável duração do processo.

 

Modulação dos efeitos

 

Questão de ordem foi aventada por representantes de estados e municípios acerca da necessidade de pronunciamento da Corte quanto à modulação dos efeitos da decisão. O STF ainda não se pronunciou em definitivo sobre o reestabelecimento do regime antigo no que se refere aos precatórios e pagamentos feitos entre 2010 e 2013 ou se a declaração de inconstitucionalidade da EC nº 62/2009 somente produzirá efeitos após a publicação da decisão judicial no Diário Oficial.

O Ministro Teori Zavascki alertou para o risco de que o cumprimento imediato da decisão possa ensejar duas situações ainda mais gravosas para o credor de precatório do que o regime previsto na própria Emenda Constitucional: (i) o retorno ao anterior estado de inconstitucionalidade sistemática, em que todas as dívidas eram imediatamente exigíveis e quase nenhuma era efetivamente quitada (inadimplência estatal sem sanção alguma); ou (ii) a virtual falência da maioria dos entes locais, que teriam de alocar em seus orçamentos o valor correspondente ao estoque da dívida, paralisando o cumprimento de outras obrigações constitucionais de igual ou maior relevância, no que se inclui a prestação dos serviços.   

Já o Ministro Luiz Fux propôs tornar nulas as regras relativas ao regime especial apenas a partir do fim do exercício financeiro de 2018, prorrogando a Emenda Constitucional nº 62/09 por mais cinco anos, até o fim de 2018, propondo a preservação da própria Emenda considerada inconstitucional, a fim de evitar a inadimplência sem consequências como antes se dava. Ao final indicou a necessidade da declaração de nulidade retroativa apenas das regras acessórias relativas à correção monetária e aos juros moratórios.

É o que se conclui da notícia divulgada no site do STF (www.stf.jus.br):

“Regime especial

O regime especial instituído pela EC 62 consiste na adoção de sistema de parcelamento de 15 anos da dívida, combinado a um regime que destina parcelas variáveis entre 1% a 2% da receita de estados e municípios para uma conta especial voltada para o pagamento de precatórios. Desses recursos, 50% seriam destinados ao pagamento por ordem cronológica, e os demais 50% destinados a um sistema que combina pagamentos por ordem crescente de valor, por meio de leilões ou em acordos diretos com credores.

O pagamento de precatórios por leilões ou acordos, segundo a proposta de modulação apresentada pelo ministro Fux, deve ser declarado nulo imediatamente após o trânsito em julgado das ADIs, porém sem efeitos retroativos. Foram declaradas nulas, com eficácia retroativa, as regras que instituíam o índice da caderneta de poupança para correção monetária e o cômputo dos juros moratórios dos precatórios, por serem considerados insuficientes para recompor ou remunerar os débitos.

Novos critérios

‘Como em toda e qualquer decisão que fixa prazo para o Estado atuar, estão em jogo a efetividade da Constituição Federal e a credibilidade do STF’, afirmou Fux. ‘Daí a importância de o pronunciamento de hoje fixar mecanismos que criem incentivos sérios para retirar a Fazenda Pública da situação confortável com que vinha lidando com a administração de sua dívida originada por condenação judicial. Deixar de pagar precatórios não deve jamais voltar a ser uma opção para governantes’.

Vencido o prazo fixado (fim de 2018), o ministro afirmou que deve ser imediatamente aplicável o artigo 100 da Constituição Federal, que prevê a possiblidade de sequestro de verbas públicas para satisfação do débito quando não ocorrer dotação orçamentária. Ele chamou a atenção para a necessidade de o STF rever sua jurisprudência sobre a intervenção federal em caso de inadimplência de governos locais com precatórios. Para o ministro, a intervenção, ainda que não resolva a questão da falta de recursos, serviria como incentivo ao administrador público para manter suas obrigações em dia. Segundo a jurisprudência da Corte, a intervenção federal está sujeita à comprovação do dolo e da atuação deliberada do gestor publico.

‘No caso dos precatórios, essa jurisprudência, ainda que inconscientemente, acabou alimentando a inadimplência do poder público’, observou. ‘O não pagamento do precatório, desde que despido de dolo, tornou-se prática que não envolve qualquer custo. O custo do não pagamento – a intervenção federal -, que existia em estado potencial na legislação brasileira, foi reduzido a absolutamente zero’, afirmou”.

 

O julgamento foi suspenso por pedido de vista do Ministro Dias Toffoli, com os votos de Luiz Fux, Roberto Barroso e Teori Zavascki a favor da modulação da decisão.

 

3.2.2 – Controle preventivo: tramitação de projetos no Congresso Nacional.

 

O controle judicial preventivo de projetos de lei voltou a ser objeto de debate no Supremo Tribunal Federal em 2013. Tradicionalmente, a jurisprudência da Corte tem feito uma distinção no que toca à possibilidade de se efetuar tal fiscalização prévia, distinção essa baseada na natureza do vício de inconstitucionalidade que macula o projeto.

No caso de projetos legislativos que não sigam o rito processual de deliberação previsto na Constituição Federal, incorrendo em inconstitucionalidade formal, o STF compreende que, ante o manifesto descumprimento de norma constitucional, é possível o trancamento da tramitação, desde que requerida por membro de uma das casas do Congresso Nacional.

Por outro lado, no que diz com os vício de inconstitucionalidade material que possam viciar a proposição legislativa, o STF entende ser possível, somente nos casos de emendas constitucionais, o controle preventivo da constitucionalidade, impedindo o processo legislativo de propostas de emendas à Constituição que contrariem um dos limites materiais ao poder constituinte de reforma. É que, ao instituir tais limites, o § 4o do art. 60 da Constituição afirma, literalmente, que “não serão objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir” a forma federativa de Estado; o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; e os direitos e garantias individuais.

Desse modo, como a Constituição veda a simples tramitação desses projetos, o STF entende ser possível o ajuizamento, por membros do Congresso Nacional, de medida judicial voltada ao trancamento de tais processos legislativos, operando-se – desde logo – o cotejo entre a proposta de emenda e os limites materiais ao poder de reforma.

No caso analisado pelo Supremo em 2013, foi ajuizado um mandado de segurança – ação assemelhada ao writ of mandamus do direito anglo-saxônico – com a finalidade de barrar a tramitação de um projeto de lei – e não de uma proposta de emenda à Constituição, como ordinariamente aceito pela jurisprudência do Tribunal –, projeto de lei esse considerado materialmente inconstitucional pelo impetrante, um Senador da República.

A proposta constante do projeto de lei em tramitação no Senado Federal inibia a criação e fusão de partidos políticos, desencorajando a troca de partido por parlamentares, uma vez que os impedia de fazer com que os votos por eles obtidos fossem levados em consideração para fins de beneficiar a nova agremiação com tempo de propaganda partidária em rádio e TV e com a parcela de recursos do Fundo Partidário que corresponderia a esses mesmos votos.

Em abril de 2013, a tramitação do projeto foi suspensa por uma liminar concedida pelo ministro Gilmar Mendes, relator do writ. Aduziu o ministro que o princípio da supremacia da Constituição e a própria ideia de Estado constitucional excepcionalmente autorizariam o STF a interferir no processo legislativo para coibir a tramitação de proposições manifestamente inconstitucionais. Após assentar essa premissa relacionada ao conhecimento da ação, o relator considerou que o projeto de lei, se aprovado, poderia quebrar a isonomia entre os parlamentares, além do que ensejaria a fixação de normas em contrariedade com a jurisprudência do próprio STF na matéria, o que seria inadmissível.

Todavia, em 5 de junho de 2013, ao julgar o mérito do mandado de segurança, o Plenário cassou a liminar originariamente deferida e refutou a possibilidade de exame prévio de eventual  inconstitucionalidade material do Projeto de Lei 14/2013, por entender que sua intervenção violaria o princípio da separação entre os três poderes.

Desse modo, a Corte reiterou o entendimento, já adotado em outras oportunidades, de que o Supremo só pode interferir em projetos de lei quando a tramitação estiver desrespeitando o devido processo legislativo, concluindo que obstaculizar um projeto em razão de seu  suposto conteúdo inconstitucional não seria papel da corte. A maioria dos ministros considerou que, caso tal controle prévio fosse admitido, o Judiciário se transmudaria em um terceiro participante das rodadas parlamentares, jogo político do qual não faz parte.

Assim sendo, o mérito da questão só seria passível de análise pelo STF após a promulgação da lei. Por outro lado, restou assentado que, a única exceção admitida pela jurisprudência pátria é, como visto, a hipótese de proposta de emenda constitucional manifestamente ofensiva a cláusula pétrea. O Supremo, ao final, privilegiou a ampla deliberação parlamentar, inclusive para que eventuais vícios substanciais do projeto possam ser objeto de eventual debate amplo e plural, que poderá resultar na correção de seu conteúdo pelo próprio Legislativo.

 

3.2.3 – Combinação de leis e separação de poderes.

 

Em novembro de 2013, o Supremo Tribunal Federal teve oportunidade de apreciar um interessante caso envolvendo a possibilidade de combinação de dispositivos de diversas leis, com o intuito de estabelecer regime jurídico mais benéfico ao réu em ação penal.

Julgando o Recurso Extraordinário (RE) 600.817, em regime de repercussão geral, o STF assentou incumbir ao juiz da causa a análise global da legislação, de modo a aplicar – no cotejo entre duas leis que se sucedem no tempo – a mais favorável ao acusado. Essa conclusão decorreu da discussão em torno da nova Lei de Drogas – Lei nº 11.343/2006 – que  revogou a Lei 6.368/1976.

A nova lei, além de discernir a figura do traficante daquela do usuário, majorou a pena mínima até então aplicada ao crime de tráfico de drogas. Por sua vez, instituiu uma causa especial de redução da pena.

Desde a vigência da nova lei,  discutia-se a possibilidade de, nos casos de crimes praticados sob a égide da lei anterior, admitir-se a pena mínima prevista no regime antigo combinada com a cláusula de redução da lei nova.

Ao julgar o recurso de um condenado por tráfico de drogas, a maioria dos ministros do Supremo entendeu que a combinação de dispositivos de leis diferentes é proibida porque ensejaria a criação de uma terceira norma, não objeto de deliberação pelo Poder Legislativo.

Assim, o Plenário considerou que cabe ao juiz analisar, caso a caso, qual a lei, como um todo, é mais benéfica ao réu, sob pena de ofensa ao princípio da separação de poderes.

 

3.2.4 – Rito das Medidas Provisórias.

A atuação do legislador e os limites do controle jurisdicional acerca do processo legislativo voltou à pauta do STF. O Tribunal foi desafiado a julgar a ADI nº 4.029/DF, que versava sobre a inconstitucionalidade da Lei nº 11.516/2007, resultado da conversão da Medida Provisória (MP) nº 366/2007, que criou o Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade (ICMBio), uma autarquia federal cuja função é executar ações da política nacional de unidades de conservação da natureza.

Em discussão o rito das medidas provisórias e o teor da Resolução nº 1/2002 do Congresso Nacional que possibilitou a dispensa de parecer da comissão mista incumbida de opinar previamente em todas as medidas provisórias em tramitação, conforme o teor do § 9º do art. 62 da Constituição Federal, em situações excepcionais, a fim de agilizar o prazo constitucional de tramitação da MP.

Na sessão plenária do dia 7.3.2012, o STF analisou o pedido de inconstitucionalidade formal da Lei nº 11.516/2007 sob a alegação de que a medida provisória que lhe originou não encontraria respaldo na urgência e relevância aptas a lhe justificar e por manifesta desobediência ao regime de tramitação do projeto já que não houve emissão do parecer  da comissão mista dentro do prazo legal.

Assim, a despeito da ausência de emissão de parecer pela comissão mista, a Medida Provisória nº 366/2007 foi aprovada pelo Congresso e convertida na Lei nº 11.516/07, pois se enquadraria em uma da exceções previstas na Resolução do Congresso a permitir o prosseguimento do processo legislativo.  

O Plenário do STF declarou a inconstitucionalidade do rito de tramitação das medidas provisórias adotado pelo Congresso Nacional e concluiu pela imprescindibilidade da emissão do parecer pela comissão mista, não obstante, ao final, tenha mantido, em um primeiro momento, a validade da Lei nº 11.516/2007.  

O relator, Ministro Luiz Fux, entendeu que a Resolução  nº 1/2002 ao dispensar o parecer da Comissão Mista, e, indiretamente, permitir a conversão de medida provisória por meio de mero parecer individual de parlamentar, afrontou o § 9º do art. 62 da CF/88, como se vê das razões expostas:

“A magnitude das funções das Comissões Mistas no processo de conversão de Medidas Provisórias não pode ser amesquinhada. Procurou a Carta Magna assegurar uma reflexão mais detida sobre o ato normativo primário emanado pelo Executivo, evitando que a apreciação pelo Plenário seja feita de maneira inopinada. Percebe-se, assim, que o parecer da Comissão Mista, em vez de formalidade desimportante, representa uma garantia de que o Legislativo seja efetivamente o fiscal do exercício atípico da função legiferante pelo Executivo”.

 

Necessário ainda tecer algumas considerações quanto à modulação de efeitos do julgamento.

No dia 7.3.2012 (quarta-feira) o STF conferiu efeitos erga omnes e vinculantes à declaração incidental, atribuindo efeitos retroativos (ex tunc) à declaração de inconstitucionalidade dos arts. 5°, caput e 6°, §§ 1° e 2° da Resolução nº 1 do Congresso Nacional, mandamento que alcançaria todas as medidas provisórias já convertidas ou não em lei. Por outro lado, em relação especificamente ao Instituto Chico Mendes, optou naquela assentada por preservar seu funcionamento, assinalando um prazo de 24 (vinte e quatro) meses para que uma nova lei fosse aprovada de acordo com o rito legislativo adequado.  

Registre-se, todavia, que no dia seguinte ao julgamento, ou seja, no dia 8.3.2012 (quinta-feira), a pedido do Advogado Geral da União (AGU), o STF apreciou uma relevante questão de ordem.

O AGU alertou para o caos institucional que a decisão do Tribunal acarretaria  considerando que cerca de 500 (quinhentas) leis em vigor resultariam de conversão de medidas provisórias aprovadas conforme o procedimento inquinado de inconstitucionalidade. Destacou importantes atos normativos, dentre os quais as leis do “Bolsa Família” e da “Minha Casa Minha Vida” (programas de governo na área social), além da circunstância de que inúmeras medidas provisórias ainda estariam em tramitação no Parlamento, o que motivaria muitos questionamentos no Supremo motivados pelo julgamento.

O STF, em prestígio à segurança jurídica e visando preservar todas as medidas provisórias já convertidas até então em lei, bem  as “ainda” em tramitação, optou por uma revisão da modulação de feitos, ante a constatação de que, no Brasil, várias medidas provisórias teriam sido apreciadas de forma inconstitucional. Tal circunstância ensejaria, indubitavelmente, uma avalanche de ações questionando leis há muito tempo em vigor.

Por tais razões, a Corte realizou nova modulação de efeitos da decisão.

Na ocasião, o Ministro Luiz Fux assentou que “a modulação de efeitos possui variadas modalidades, sendo adequada ao caso sub judice a denominada pure prospectivity, técnica de superação da jurisprudência em que ‘o novo entendimento se aplica exclusivamente para o futuro, e não àquela decisão que originou a superação da antiga tese’ .

O Plenário do STF acolheu a questão de ordem para declarar o efeito ex nunc da declaração de inconstitucionalidade da Resolução nº 1, do Congresso Nacional, preservando as medidas provisórias já convertidas em lei sem o parecer da comissão mista ou ainda daquelas em tramitação, porquanto prática comum adotada pelo parlamento.

O parecer da comissão mista (previsto no já referido § 9º do art. 62 da CF/88) deverá ser exigido obrigatoriamente a partir da declaração de inconstitucionalidade formal da Lei nº 11.516/2007. Em outras palavras, tal requisito será obrigatório apenas para as medidas provisórias editadas futuramente (aquelas assinadas e encaminhadas ao Congresso Nacional a partir do julgamento ora em análise).

Em suma, no julgamento da questão de ordem do dia 8.3.2012, que representou um verdadeiro pedido de reconsideração, em tese vedado em sede de controle abstrato, conforme previsão expressa nas leis nº 9.868/99 (art. 26) e nº 9.882/99 (art. 12), o STF modificou a decisão do dia anterior 7.3.2012. Afastou a inconstitucionalidade da Lei nº 11.516/07 – que criou o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) – considerando-a válida tendo em vista que a inconstitucionalidade dos arts. 5°, caput e 6°, §§ 1° e 2° da Resolução nº 1, do Congresso Nacional somente produziria efeitos ex nunc.

Durante os debates acerca do cabimento da questão de ordem, o Ministro Gilmar Ferreira Mendes considerou que “de fato, a situação é muito grave, talvez uma das mais graves com as quais já tenhamos nos deparado, tendo em vista que a dimensão vai muito além do que o caso que foi objeto de discussão”.

A decisão excepcional, e, aparentemente sui generis, entra para os anais da Suprema Corte brasileira e para a história do controle de constitucionalidade no Brasil.

 

3.3 – Garantias constitucionais no processo penal.

 

3.3.1. Ação Penal nº 470 –  O Processo do Mensalão

O Supremo Tribunal Federal julgou em 53 sessões das 96 sessões plenárias no período de 2012 a 2013 o mais longo e complexo processo de sua história e que foi acompanhado intensamente tanto pela sociedade, como pelos meios de comunicação: a Ação Penal nº 470/DF, conhecida como o processo do “Mensalão”, cuja relatoria incumbiu ao Ministro Joaquim Barbosa. O caso não envolveu, em seu núcleo, a discussão de uma questão constitucional, mas importantes temas surgiram ao longo das discussões, tais como a questão da perda automática dos mandatos parlamentares em razão de condenação criminal e o princípio do duplo grau de jurisdição.

Em foco, o sistema político brasileiro como um todo, identificado e caracterizado, infelizmente, por desvios, corrupção, a criminalidade econômica, e, por fim, a almejada mudança social na forma de fazer política no Brasil.  

Ao longo do julgamento houve alteração na composição da Corte. Em 2012 dois membros da Casa se aposentaram ao completarem 70 anos (aposentadoria compulsória), a saber, Ministros Cezar Peluso e Carlos Ayres Britto.

Uma das inovações do julgamento foi a admissão do dolo eventual para ensejar a condenação do crime de lavagem de dinheiro, dispensando a intenção de prática do crime de ocultação de recursos financeiros de origem ilícita, porquanto suficiente a mera assunção do risco da prática da lavagem para sua caracterização.  

Por sua vez, a teoria do domínio funcional do fato foi aceita pela vez primeira no STF. Para o Tribunal, os dirigentes de instituição financeira não apenas podem, mas devem evitar empréstimos fraudulentos, em especial porque devem ter controle da atividade (compliance) elemento suficiente para a configuração de crime financeiro.

A necessidade de comprovação do ato de ofício pelos acusados por corrupção ativa e passiva foi objeto de intenso debate no tribunal. Ao final concluiu pela dispensa da demonstração da finalidade a qual se destinaria a vantagem indevida, por ser suficiente a mera possibilidade da prática o ato ilegal.

O Supremo destacou a importância das provas indiciárias, que poderiam ser valoradas desde que não fossem a única fonte para a formação do convencimento do juiz, à luz do princípio do seu livre convencimento motivado.

No último capítulo do julgamento, os ministros decidiram incumbir ao próprio Supremo, e não ao parlamento, determinar a perda do mandato de parlamentares condenados criminalmente. A solução foi extraída da exegese conferida aos artigos 15, inciso III  e 55, incisos IV e VI, da Constituição Federal . Prevaleceu a tese de que cabe ao Congresso Nacional apenas declarar a perda do mandato diante da decisão do Supremo, e não o contrário, sob pena de se ter o que se apelidou de “parlamentar presidiário”, o que é inadmissível.

 

3.3.2. Os Embargos infringentes e a possibilidade de execução imediata de condenações definitivas

O cabimento do recurso denominado “embargos infringentes”, exclusivo da defesa, e cujo pré-requisito é a existência de, no mínimo, quatro votos vencidos no sentido da improcedência da ação penal, foi uma das principais discussões jurídicas travadas na Ação Penal nº 470 em 2013. O recurso, ao final dos árduos debates, foi recebido pela maioria do Tribunal.

A Lei nº 8.038, de 28 de maio de 1990, que disciplina os processos que tramitam perante o Supremo Tribunal Federal não previu o cabimento dos embargos infringentes. No entanto, o Regimento Interno do STF, com a redação da Emenda Regimental nº 1, de 25 de novembro 1981 consagra expressamente o cabimento de embargos infringentes (artigo 333 e parágrafo único do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal).

O artigo 333 da regra regimental foi editado quando o ato normativo desfrutava de força de lei, estabelecendo a possibilidade de interposição de embargos infringentes em em cinco situações: (i) condenações penais; (ii) revisão criminal julgada improcedente; (iii) ação rescisória, (iv) representação de inconstitucionalidade e (v) recurso criminal ordinário julgado desfavoravelmente ao réu. O parágrafo único fixou o critério para os embargos: “o cabimento dos embargos, em decisão do Plenário, depende da existência, no mínimo, de quatro votos divergentes”.

Dentre os 11 ministros do Tribunal, seis consideraram que o dispositivo não havia sido revogado.

A maioria, apertada, considerou que, em 1998, o então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso havia enviado ao Congresso projeto de lei que alterava a Lei nº 8.038/90 buscando suprimir os embargos infringentes no Supremo Tribunal Federal. Todavia, o projeto não foi aprovado, mantendo o recurso no sistema. Na ocasião, anotou-se que o recurso foi admitido em inúmeras decisões monocráticas, consagrando a regra regimental vigente há mais de trinta anos.

O voto de desempate foi proferido pelo decano da Corte,  Ministro Celso de Mello, acompanhando a divergência inaugurada pelo Ministro Luis Roberto Barroso, que admitiu os embargos infringentes.

No voto de “minerva” afirmou-se que “os embargos infringentes a que se referem o artigo 333, inciso 1º, do Regimento Interno da corte, não sofreu no ponto, segundo entendo, derrogação tácita ou indireta em decorrência da superveniente edição da Lei nº 8.038/1990, que se limitou a dispor sobre normas meramente procedimentais, concernentes às causas penais originárias”.

No julgamento foi salientada a importância do duplo grau de jurisdição previsto no Pacto de São José da Costa Rica, do qual o Brasil é signatário.

A possibilidade da interposição dos embargos infringentes não impediu o cumprimento imediato pelos réus das penas relativas aos crimes que já transitaram em julgado, consideradas, portanto, definitivas, motivo pelo qual, o relator da ação penal, ministro Joaquim Barbosa, determinou a execução imediata das condenações, com a prisão dos sentenciados, mesmo antes do encerramento definitivo da Ação Penal 470.  

 

3.4 – Direitos políticos.

 

3.4.1. O Prefeito Itinerante

 

Outro interessante precedente do ano de 2012 envolveu a discussão sobre o chamado prefeito itinerante ou profissional. O termo tem origem na jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e identifica a figura do político que se candidata e é eleito sucessivas vezes ao cargo de prefeito, porém, em municípios distintos. Ao candidatar-se em circunscrições diversas, o agente escapava, a priori, da vedação contida no artigo 14, § 5º, da Constituição, que permite uma única reeleição para os cargos de chefia do Poder Executivo. Entretanto, a jurisprudência do TSE passou a entender que a prática seria inconstitucional, por ofensa à teleologia do referido dispositivo. E essa orientação foi confirmada no STF, vencidos os ministros Marco Aurélio e Cezar Peluso, que sustentaram a taxatividade das hipóteses de inelegibilidade. A Corte decidiu modular os efeitos temporais da decisão proferida pelo TSE, atribuindo-lhe caráter prospectivo.

 

3.4.2. A Lei da Ficha Limpa    

A denominada “Lei da Ficha Limpa” (Lei Complementar nº 135/2010, que alterou a LC 64/90), que regulamentou o art. 14, § 9º da Constituição Federal,  foi proposta ao Congresso por iniciativa popular, registrando mais de 1,6 milhões de assinaturas, tendo sido aprovada para prever incluir novas hipóteses de inelegibilidade no sistema, a fim de garantir a probidade administrativa e realizar o princípio da moralidade no exercício de cargos políticos no Brasil.

No dia 16.2.2012 o STF foi instado a se manifestar acerca da constitucionalidade material da “Lei da Ficha Limpa” e a sua aplicabilidade a fatos anteriores à sua entrada em vigor. A discussão girou em torno do princípio da presunção de inocência, previsto no inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal.

A regra constitucional brasileira impõe que a lei que altere regras do pleito eleitoral somente entre em vigor um ano antes das eleições gerais. Como a Lei da Ficha Limpa foi promulgada em 4 de junho de 2010 não foi aplicada no pleito eleitoral de 2010.    

O Plenário declarou, por maioria, a constitucionalidade da Lei Complementar nº 135/2010, decidindo que a legislação se aplicaria à fatos anteriores à sua vigência, desde que cumprido o requisito de que a decisão condenatória por práticas ilícitas eleitorais ou por ato de improbidade administrativa tenha sido proferida por órgão colegiado (Tribunal de Justiça, Tribunal Regional Federal ou mesmo Tribunal do Júri), mesmo que não transitada em julgado.

Prevaleceu o entendimento de que a lei não violou a presunção de inocência pois a matéria não teria natureza penal, permitindo que a elegibilidade fosse aferida no momento do registro da candidatura, com a consideração, inclusive, de fatos anteriores  observando-se que não existiria direito adquirido à elegibilidade.

No sentido de que tal retroação seria indevida se manifestaram os ministros Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso, os quais, não obstante vencidos, consideravam inconstitucional a atribuição de efeitos negativos decorrentes de eventos pretéritos por violar o princípio da irretroatividade.

Além disso, com o julgamento ficaram impedidos de concorrer a cargos públicos eletivos os políticos cassados ou que tenham renunciado ao mandato para evitar a cassação. A inelegibilidade perdura pelo prazo de 8 anos, contados da decisão, do cumprimento da pena (no caso da condenação criminal) ou do término do mandato.

Com a decisão, os dispositivos da “Lei da Ficha Limpa” passaram a valer para as eleições municipais de outubro do ano de 2012.

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